Doutor em Educação e mestre em Filosofia, o professor da Universidade de Caxias do Sul Gelson Leonardo Rech e o também professor da UCS Everaldo Cescon, doutor em Teologia, fazem uma reflexão sobre como a espiritualidade pode dar um significado ao trabalho. Confira.
Muito se fala em espiritualidade, a falta de ou a necessidade de ter. Mas como, de fato, a espiritualidade se encaixa no mundo dos negócios, do trabalho, segmentos que precisam e dependem do dinheiro, do lucro, de metas?
Gelson Leonardo Rech: a espiritualidade se apresenta como contraponto à visão imanente da vida, ou seja, à visão de que a vida humana se esgota exatamente na materialidade dela, nos negócios com os quais nos envolvemos e dependemos. A espiritualidade aponta para ampliação da compreensão do significado da vida, aponta para a verticalidade, para a transcendência da vida. Neste sentido não há uma contradição entre o mundo do trabalho, que serve entre outras coisas para garantir a existência, num plano horizontal, imanente, e a espiritualidade enquanto esta destaca, frisa, a dignidade da vida e a projeta para além do imediato. A ampliação do significado da vida típica da visão espiritualista acrescenta à vida um elemento de dignidade, de liberdade e de realização que também se dá na realização do trabalho.
É importante estabelecer que dinheiro, lucro, metas são formas de sociabilidade que nós criamos e que inclusive podem ser diferentes e estão ligadas à materialidade e às necessidades básicas ou às necessidades criadas. A espiritualidade como uma macro compreensão da vida dá significado ao próprio trabalho, sadio, no qual o homem é sujeito do trabalho e não seu escravo, que transforma o mundo, cria a cultura e revela a beleza humana. Aliás. o trabalho é uma atividade eminentemente humana.
Everaldo Cescon: muitos pensam que a espiritualidade e o trabalho, os negócios e o lucro estejam em contradição. Segundo esta visão das coisas, quem trabalha muito não é espiritual e as pessoas espirituais trabalhariam menos. Penso que há duas maneiras de se relacionar com o trabalho e ambas podem ser problemáticas.
A primeira é fazer tudo o que é possível para esforçar-se o menos possível. Parte-se da ideia de que, infelizmente, se deve trabalhar, mas que a vida verdadeira está fora do trabalho. Por trás desta forma de pensar, encontramos pessoas que entram no mundo do trabalho sem paixão e sem grandes interesses, com a resignação de que é preciso trabalhar para viver. Quem pensa assim espera ganhar na loteria para não trabalhar mais, vive de segunda a sexta esperando pelo fim de semana, vive os meses esperando pelas férias e vive a vida esperando o tempo da aposentadoria. Em síntese, estabelece uma separação entre o trabalho e a vida.
A segunda é viver para trabalhar. É assumida pelas pessoas que têm dificuldade para viver o fim de semana sem trabalhar ou que vivem as férias com dificuldade. O trabalho se torna um ídolo. O trabalho absorve as melhores energias dessas pessoas que sonham com o sucesso profissional. Leva a sacrificar tudo (família, amigos, sentimentos, Deus) pelo mito do trabalho. Se no primeiro caso há uma separação entre vida e trabalho, na segunda a vida se torna trabalho.
A espiritualidade, entretanto, unifica. Faz com que o trabalho não seja somente um modo de ganhar o próprio pão, mas também o conteúdo central da existência. Ajuda a reconhecer melhor a atitude interior que anima as nossas ações e as consequências que derivam delas, para chegar a um modo mais humano de considerar o trabalho.
A espiritualidade justamente é a energia que ajuda a pessoa a estar plenamente naquilo que está fazendo. Um pouco como um antigo preceito dos monges: age quod agis, ou seja, faça aquilo que está fazendo. E isso passa a ser cada vez mais relevante em uma sociedade que, por meio das novas tecnologias, nem sempre favorece a concentração que leva a estar plenamente presentes onde se está. Facebook, WhatsApp, Twitter, Instagram. Tudo isso produz dispersão e, no trabalho, às vezes provoca dor física, se pensarmos naquelas atividades que exigem a estrita obediência a normas de segurança.
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Quando as pessoas, e exclui-se religiosos, missionários e demais leigos ligados a alguma religião, perceberam que a espiritualidade deve e pode ser aplicada no trabalho, no empreendedorismo?
Gelson Leonardo Rech: as pessoas é que possuem a compreensão da verticalidade da vida e elas atuam nas empresas. As empresas são as pessoas. Mas sendo mais objetivo, percebemos que existem associações de empresários com clara opção pela visão espiritualista, além disso, podemos perceber na definição do planejamento estratégico das empresas no quesito "valores" um acento na perspectiva espiritual quando destacam o respeito à pessoa, a responsabilidade social, etc.
Everaldo Cescon: possivelmente diante da percepção do adoecimento e dos males em geral que o trabalho, ou a falta dele, pode gerar e, contrariamente, a satisfação que a dimensão humana e social pode reservar àqueles que trabalham. Todos estes aspectos merecem um profundo respeito e estima, mas necessitam também de motivações e recursos tais como a espiritualidade e a fé podem oferecer em termos de humanização e de autenticidade.
Há percepções sobre como a espiritualidade está inserida no mundo corporativo, nas empresas? É movimento consistente?
Everaldo Cescon: A espiritualidade não implica necessariamente praticar uma religião ou ter um credo. Em geral a espiritualidade está ligada ao espírito humano, implica considerar que a transcendência se refere ao ser humano. É uma das formas por meio das quais o ser humano busca o sentido da própria existência. Para permanecer numa visão leiga da espiritualidade, ela pode ser melhor compreendida analisando as artes, isto é, os produtos da criatividade humana: a poesia, a pintura, a música, etc.
É nesta dimensão laica que a espiritualidade está inserida no mundo corporativo, enquanto inteligência espiritual capaz de aumentar a resiliência humana, de transformar as realidades negativas e de diminuir o adoecimento do trabalhador, capaz de criar climas organizacionais positivos e que propiciam a realização através da atividade laborativa. Não se trata de aumentar a produtividade ou os lucros, mas de assumir que o trabalho tem uma função social.
No Brasil ainda é um movimento incipiente, vinculado a indivíduos e não como movimento coletivo, organizacional. Vê-se, por exemplo, no fato de as inscrições na Especialização em Espiritualidade no Trabalho e pela Especialização em Inteligência Espiritual (dois cursos lato sensu da UCS) serem fruto de uma busca individual e não parte de um plano de formação de alguma empresa. Certamente é um movimento que tende ao crescimento, mas no momento ainda é uma busca individual.
De que forma a espiritualidade pode fazer com que empresários, gestores, lideranças, colaboradores de empresas possam ter um propósito no mundo do trabalho? Onde o fazer o bem se encaixa nisso?
Gelson Leonardo Rech: sempre digo nos processos formativos dos pedagogos, que podemos não pensar como estamos educando mas estamos educando como pensamos. O fazer o bem não é só fruto de uma visão espiritualista, mas esta catapulta este tipo de comportamento altruísta. Um empresário, um gestor é uma pessoa, e as pessoas agem exatamente a partir de suas crenças. Podemos não refletir sobre elas, nem mesmo percebê-las, mas agiremos inevitavelmente a partir delas. A história da humanidade testemunha que muitas foram as tentativas das religiões, exatamente de propor, e até de impor, uma visão transcendental da vida. A partir do século XX estamos experimentando movimentos espiritualistas de diversas origens, ocidentais e orientais, que marcam a nossa cultura e semeiam a perspectiva do desapego às questões materiais, e sublinham a a dimensão espiritual.
Everaldo Cescon: o trabalho deve ser entendido não como um simples meio de ganhar a vida. O trabalho é o modo pelo qual alguém se realiza no que faz, é a dimensão sem a qual o sentido da existência humana deveria ser redimensionado. Por isso, alguém sem trabalho não perde somente a sua forma de sustento, perde literalmente a sua forma de realização, gera a sensação de impotência, de inutilidade, de incerteza que invalida projetos, esperanças e expectativas.
A espiritualidade, vinculada necessariamente à ética e à justiça, devem nos fazer recuperar a dimensão realizadora do trabalho. João Paulo II afirmou que, quando o homem trabalha, não modifica somente as coisas e a sociedade, mas aperfeiçoa também a si mesmo. Aprende muitas coisas, desenvolve as suas faculdades, é levado a sair de si mesmo a superar-se. A espiritualidade deve também impedir realidades como a exploração, a desigualdade de tratamento entre homem e mulher, o trabalho infantil, o trabalho paralelo e clandestino e, sem dúvida, os problemas do desemprego.