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Caxias do Sul ainda tem muito a aprender com o incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, que matou 242 pessoas e deixou outras 680 feridas. Passados cinco anos da maior tragédia do Estado, poucos foram os municípios que adequaram suas legislações às novas leis de prevenção de incêndios estadual e federal. Caxias do Sul, por exemplo, está entre as cidades que mantém códigos de posturas e de obras e edificações, incluindo o plano diretor, defasados em relação à legislação. Por outro lado, apesar da maior agilidade na análise dos pedidos de alvará, mais da metade das casas noturnas da cidade ainda não conseguiram cumprir as normas criadas para salvar vidas.
Embora a prefeitura e o comandante do 5º Comando Regional dos Bombeiros (5º CRB), com sede em Caxias, major Ederson de Albuquerque Cunha, entendam que a prevenção de incêndio é questão de segurança pública e, portanto, responsabilidade do Estado, não cabendo aos municípios legislar sobre o tema, há quem tenha outro ponto de vista.
— Temos um regramento estadual que está balizando todos os municípios. As adaptações que têm que ser feitas são no código de edificações, e o nosso (de Caxias) tem de ser revisado porque é muito antigo, e também em alguns dispositivos no plano diretor. O código de edificações tem algumas prescrições que vão contra a própria legislação estadual. Temos que fazer com que as leis conversem umas com as outras e se referenciem — analisa o arquiteto caxiense Celestino Rossi, representante do Sindicato da Indústria e da Construção Civil (Sinduscon) no Conselho Estadual de Segurança, Prevenção e Proteção Contra Incêndio.
Para adequar os códigos à lei estadual, o Executivo teria de constituir uma comissão técnica, formular uma proposta e submeter à Câmara de Vereadores. Esse movimento, porém, não existe.
Questionado a sobre a legislação local, o secretário municipal de Planejamento, Fernando Mondadori, diz que a prefeitura está "acompanhando as mudanças de leis constantes, e o município está adaptando suas edificações às exigências mais recentes." Por outro lado, ele reforça que "não existe necessidade de lei municipal", opinião compartilhada pelo major Cunha.
— O que poderia ser feito é a formação de uma comissão no âmbito regional, que tem previsão legal, para tratar de alguns assuntos locais — sugere o comandante do 5º CRB.
O tenente-coronel César Eduardo Bonfanti, do Departamento de Segurança, Prevenção e Proteção Contra Incêndio (DSPCI) dos Bombeiros no Estado, explica que nos municípios que tiverem leis que tratem sobre a mesma questão, valem as regras mais rígidas, estando elas na legislação estadual ou na municipal. O que o artigo 57 determina, conforme ele, é "para que não haja nada conflitante com a lei estadual":
Ainda conforme Bonfanti, não há previsão de sanção para os municípios que mantiverem legislações desatualizadas. Enquanto o município não atualiza as suas leis, os profissionais da área da construção têm de trabalhar com ambas as regras, municipal e estadual.
— O que pode ocorrer é a dificuldade das pessoas (de Caxias) de cumprir uma legislação que nós vamos cobrar, que é a estadual — finalizou Bonfanti.
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43% das casas noturnas de Caxias têm alvará dos bombeiros
Um levantamento do 5º CRB apontou que dos 119 estabelecimentos de diversão noturna localizados nas 49 cidades de abrangência, pouco mais da metade está com alvará de prevenção de incêndios em dia, o que corresponde a cerca de 57% das casas noturnas. Os outros 51 ou estão processo de regularização ou estão irregulares. Em Caxias, o índice de regularização é ainda menor. Dos 44 estabelecimentos do município, 19 têm alvará dos bombeiros em dia — 43,11% do total—, 18 estão com processo em tramitação, cinco estão com documento vencido e dois estão interditados. O comando não divulga os nomes dos empreendimentos.
Das 18 casas noturnas de Caxias que encaminharam projetos para obtenção do alvará junto aos bombeiros, cinco tiveram os projetos aprovados e a corporação aguarda as solicitações de vistorias. Outros nove receberam notificação para correção dos projetos e quatro receberam notificações para correções após a vistoria.
As duas casas interditadas, segundo o comandante do 5º CRB, major Ederson de Albuquerque Cunha, não tinham, em parte ou totalmente, os itens mínimos exigidos em lei para prevenção de incêndio. Entre os dispositivos previstos, estão extintores e saídas de emergência.
Empresários que estão em dia com as regras se sentem mais tranquilos, caso da Libertá Danceteria. Por mais exigente que seja a legislação, a casa mostra que é possível se manter adequado e, ainda, ir além para garantir a segurança dos frequentadores.
— O importante é ter bons equipamentos e pessoas treinadas. Isso sim salva vidas — diz o gerente da casa noturna, Salatiel da Rosa.
Segundo o empresário, ele precisaria ter dois brigadistas, mas optou por treinar duas pessoas de cada setor _ bar, garçons, músicos e seguranças _, totalizando oito pessoas. Além disso, a casa tem central de alarme de incêndio, detectores de fumaça, iluminação de emergência, portas, extintores e placas luminosas indicativas de saída, entre outros itens.
— Quem ganhou com tudo isso foram as pessoas — conclui o empresário.
Ainda conforme o 5º CRB, de fevereiro de 2013 até dezembro de 2017, não foi registrado nenhum incêndio em casa noturna em Caxias. No período, foram feitas 46 interdições, emitidas 69 notificações de infrações (multas) e três fiscalizações após denúncia. Na região, foram 79 interdições e 133 notificações.
A ideia, de acordo com o major Cunha, é que os empresários com pendências procurem os bombeiros para regularizar a situação.
LEGISLAÇÃO
O que diz o artigo 57 da Lei 14.376, de 26 de dezembro de 2013:
"Os municípios deverão atualizar sua legislação, recepcionando o disposto na presente Lei Complementar, no prazo máximo de 12 (doze) meses a partir da publicação da sua regulamentação"
A lei ainda diz que a "atualização da legislação municipal sobre segurança contra incêndio suplementará" o disposto na lei, "asseguradas a autonomia e a independência dos municípios nos assuntos de interesse local".
HOMENAGENS EM SANTA MARIA
PROGRAMAÇÃO
As homenagens às vítimas da boate Kiss, em Santa Maria, começaram na noite de sexta-feira. O documentário Depois Daquele Dia, dirigido por Luciane Treulieb, irmã de João Aloísio Treulieb, uma das 242 vítimas fatais da Kiss, foi exibido na Praça Saldanha Marinho. O filme mostra o impacto e os aprendizados que a tragédia trouxe para Santa Maria e para a própria Luciane.
Ainda na sexta-feira, familiares das vítimas fizeram uma caminhada iluminada, com velas, da praça até o prédio da boate, na Rua dos Andradas, no Centro. No local, fizeram vigília pela madrugada.
Sábado
:: 9h — Será lançado, pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-RS), o concurso público nacional para a construção de um memorial em homenagem às vítimas. O ato será no Salão Azul do Centro Universitário Franciscano (Unifra), na mesma Rua dos Andradas. A ideia é que o memorial substitua o prédio da boate _ que teve a demolição suspensa na quinta-feira, a pedido dos familiares das vítimas, até que os processos judiciais do caso transitem em julgado.
:: 20h30min — Encerramento das homenagens, com um toque coletivo de sinos. Na sequência, amigos e familiares das vítimas soltarão balões em homenagem aos mortos.