Pela primeira vez na história da humanidade, a escrita passou na frente da fala como forma de comunicação. Antes, falávamos, conversávamos, ligávamos. A escrita era, no geral, um empecilho à agilidade necessária para fazer uma mensagem chegar de a a b. Para mandar cartas, só com selos, endereçamento e encaminhamento dos correios. Isso criava uma aura sobre aquele objeto, tantas vezes relido, repensado, reescrito. Era um evento, portanto. Que às vezes acabava sem resposta ou confirmação de leitura: nada de dois risquinhos azuis.
De resto, no nosso cotidiano, era a voz que nos informava, que nos abria portas, que resolvia nossos problemas. O rádio e a televisão driblaram, por muito tempo, as dificuldades de leitura da população para levar as notícias a todos. Agora, a alfabetização já começa na tela do smartphone, que não é mais exclusividade de classe alguma.
Quando atrasados para um encontro, avisávamos do problema com uma ligação. Se fosse preciso dar um recado, daqueles do tipo "não esquece de levar os ingressos", era por ligação. "Fulano te ligou", avisava a mãe quando os amigos erravam o horário do contato. Hoje, não. FaceTime e Skype ainda fazem parte da pequena resistência contra a comunicação escrita, mas no geral a gurizada fala por WhatsApp e Messenger mesmo. E não só a gurizada.
A mítica figura da senhora na fila do banco, que largava uma frase solta no ar para tentar fisgar alguém e engajar uma conversa sobre o tempo, sumiu. Uma porque as filas diminuíram, e muito, com o internet banking, e outra que, quando presentes em corpo, as pessoas passam o tempo todo com os olhos grudados na tela em suas mãos. Até mesmo a senhora que procurava com quem conversar. Mas não veja isso com maus olhos.
Eu sei que a leitura, face receptora da escrita, individualiza. Coisa ruim é tentar ler um texto em dupla, cada um tem a sua velocidade. Mas isso é parte de sua natureza não intrusiva. Ela é a melhor forma de comunicação para ser usada com discrição. É possível dar uma espiada no celular, ler e responder uma ou duas coisas sem atrapalhar uma aula, por exemplo. No ônibus, podemos ler e-mails e mensagens sem que as pessoas sequer saibam o que estamos fazendo.
Redes sociais, WhatsApp, e-mails, não importa: é pela escrita que mais nos comunicamos, sim. Os grupos de famílias no WhatsApp comprovam. Quinze, trinta, cinquenta notificações de interação e um nervosismo crescente se alguém não responde. Estar sempre com o telefone não adianta mais. Estar sempre online é o que se pede.
Opinião
Diogo Sallaberry: escrita, leitura e dois risquinhos azuis
Aos sábados, jornalistas do Pioneiro publicam crônicas sobre assuntos diversos
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