Tratava-se de ouro. Sim, ouro mesmo. Não ouro puro, mas pó de ouro misturado a outros elementos, ela adiantou-se em explicar. Mesmo assim, era ouro. Ela falava e exibia a prótese dentária que havia extraído de minha boca, na revisão sazonal que fazemos de minha arcada dentária, ela e eu: eu, o portador dos dentes; ela, a dentista que deles cuida há anos. A partir de sua acurada competência, detectara ela um leve frouxar na prótese, o que bastou para que a arrancasse, investigasse, limpasse e recolocasse no lugar, firme e forte, pronta para seguir triturando e mastigando os nacos de picanha de que tanto gosto.
A novidade, no entanto, era a informação de que a tal prótese, fabricada para minha boca há décadas por outro dentista em outra cidade, fora muito bem forjada, com o uso, inclusive, de pó de ouro, o que surpreendeu a ela e a mim deixou de boca aberta, com um sugador resfolegante dependurado na gengiva. O que ela queria dizer era que o material encravado em minha boca era de primeira qualidade, o que me deixou bastante satisfeito, afinal, quem por aí tem o privilégio de mastigar ouro nas churrascarias de Caxias do Sul além de mim? Porém, à medida em que ela ia trabalhando dentro de minha boca, sensações diversas desfilavam por minha mente, antes de desaparecerem sugador adentro.
Uma delas foi a de medo. Medo de dormir de boca aberta em um ônibus ou em um assento de avião e despertar mais tarde dando por falta de minha valiosa prótese, surripiada por algum meliante atento a tudo o que reluz no interior da cavidade bucal de fortuitos e desatentos companheiros de viagem. Outra sensação foi a de esperteza, quando me dei por conta de que, em se aprofundando essa crise que atualmente nos assola, tenho na manga (ou na gengiva) a possibilidade de empenhar a prótese no caso de falta de recursos para a conta de luz ou para a conta na churrascaria.
Por fim, assomou-me à mente a percepção maior de todas: a de que nem sempre a presença de ouro na boca garante o valor daquilo que sai por ela. Muitas vezes, vale mais ouro aquilo que uma boca não diz. Obrigado pelo pequeno pó de sabedoria, minha prótese.
Opinião
Marcos Kirst: muitas vezes, vale mais ouro aquilo que uma boca não diz
Nem sempre a presença de ouro na boca garante o valor daquilo que sai por ela
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