Observo que a letra "o" do teclado do meu notebook está se apagando. Trata-se de um teclado todo preto, com as letras impressas em branco, uma em cada tecla (o que é óbvio), e elas vão se apagando com o uso e com o tempo. Com o tempo de uso, melhor dizendo. Mas é a letra "o" quem se destaca nesse processo sutil e quase despercebido que as teclas empreendem, de irem desaparecendo um pouquinho, um quase nada, a cada toque nelas impresso pelas digitais de meus dedos.
Se olhar com atenção, percebe-se (e o amigo leitor, a amiga leitora, perceberiam igualmente, caso aqui estivessem) que o "o" está ali, porém, não mais inteiro em sua circunferência perfeita. A parte superior esquerda, ou seja, a região noroeste da letra "o" do teclado do meu notebook já não existe mais, apagou-se. Algum incauto mais desavisado que resolvesse utilizar meu notebook não se depararia com uma letra "o" perfeita, mas, sim, com uma espécie de gancho alocado à direita na tecla, ou ainda um pequeno "j" sem o pingo e mais curto nas costas, se é que essas imagens ajudam a formular uma visão clara do estado em que se encontra a letra "o" do teclado do meu notebook atualmente. Não tenho mais um "o" aqui e, sim, um semi-o, um quase-o, um o-menos, uma vogal ceifada, enfim.
E por que logo a letra "o"? Será que pressiono-a mais do que as demais teclas nos meus escreveres? Será que cultivo um terrível defeito de estilo, no qual abundam "os" em demasia? Vejamos. Usemos a primeira frase desta crônica como cobaia para um rápido levantamento, um recenseamento de letrinhas. Conto ali o uso de dez vezes a letra "o", disparado a vogal que mais foi conclamada a comparecer à confecção daquela frase. Em segundo lugar figura a letra "e", que aparece sete vezes, empatada com a "a", também sete. Uso apenas duas vezes o "u" e o "i" sequer aparece. Aliás, observo agora como o "i" está novinho em folha aqui no teclado, quase intocado. Sorte dele. "O", artigo definido masculino. "O" isso, "o" aquilo. Deve ser por isso.
A segunda tecla mais apagada é a da letra "e". "E", de "eu", afinal, "eu" isso, "eu" aquilo. E, depois, vem apagando-se a letra "m", óbvio, de "Marcos". Conclusão: o apagar das letras na tecla do computador revela a extensão do narcisismo de quem o usa. Por isso que adoro as ciências humanas...
Opinião
Marcos Kirst: por isso que adoro as ciências humanas...
O apagar das letras na tecla do computador revela a extensão do narcisismo de quem o usa
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