Dois mil anos repletos de transformações separam o alimento eternizado em afresco recentemente descoberto na antiga cidade romana de Pompéia, na Itália, da popular pizza encomendada por aplicativo que chega em poucos minutos à porta de casa. A massa arredondada, tida como provável antecessora da iguaria de hoje, é complementada por queijo, molho além de outros inúmeros ingredientes possíveis.
A cara mudou e a fome de pizza aumentou. Pelo mundo, métodos de produção foram se adaptando a um público cada vez maior e mais apressado. A pizza virou sinônimo de praticidade para quem a busca em restaurantes ou supermercados, na versão congelada. Somente no Brasil, são mais de 2,6 mil pizzas preparadas por minuto. Ainda segundo a Associação Pizzarias Unidas do Brasil (Apubra), no Rio Grande do Sul, o crescimento no número de estabelecimentos foi de 409% na última década (2012-2022). Em Caxias do Sul, 139 pizzarias estão ativas na Secretaria Municipal da Receita.
Foi neste aquecido mercado que Fabio Paesi Araujo, 30 anos, decidiu ingressar quando, em 2020, abriu a Gesto Pizzaria, em Caxias do Sul, mas com uma proposta um pouco diferente. Na simplicidade do método ancestral, ele encontrou o diferencial para o negócio, com destaque para a pizza napolitana. A tradicional receita italiana, com registros do século 16, é variável em apenas dois sabores (marinara e marguerita) e virou patrimônio cultural da humanidade reconhecido pela Unesco em 2017.
— Me identifiquei pela simplicidade e valorização dos ingredientes, sem exageros — afirma o empresário, que aprendeu na Itália o método na Associazione Verace Pizza Napoletana que, para certificação oficial, exige cumprimento à risca.
Um verdadeiro resgate que inclui massa de composição simples (farinha, água, fermento e sal), em processo de longa fermentação e um jeito diferenciado de abrir a massa. O forno com material argiloso do próprio Monte Vesúvio, localizado em Nápoles, berço da pizza, completa o empenho da Gesto para caracterização da iguaria.
— As pessoas reconhecem essa valorização à tradição, o uso de ingredientes de qualidade e a questão artesanal. Esse reconhecimento é muito importante, é uma forma de valorizar a história e a cultura — afirma o proprietário, que hoje se dedica principalmente à parte administrativa do restaurante.
O recomendado, segundo ele, é que a pizza seja consumida no local, assim que sai do forno, mas o público que ainda prefere o delivery também é assistido pela Gesto. Ao todo, são mais de mil unidades produzidas por mês. Em um cardápio que também oferece outros pratos de tradição italiana, a pizza napolitana é a preferida da clientela. Para Paesi, representa a preservação do fazer ancestral.
— É muito importante a gente se manter próximo de atividades como essa, pela valorização do trabalho humano. A gente acaba notando que se perde, dependendo do setor, mas, por se tratar de comida, é fundamental levar isso adiante para que não se perca com o tempo — avalia.
Da agrofloresta para o frasco
A manta elétrica que hoje substitui o fogo no equipamento de destilação por arraste a vapor é parte da modernidade, mas a preservação da produção em pequena escala e do cuidado ao longo de todo o processo da extração de óleos essenciais das plantas é o que torna o fazer de Marcela Cemin da Luz, 42 anos, uma alquimia. A ideia surgiu em 2020, a partir de um curso de agrofloresta, que citava algumas formas de beneficiamento das inúmeras variedades que podem ser cultivadas simultaneamente dentro deste sistema de plantio. Após buscar qualificação na área, a aprendiz das plantas e estudante de agrofloresta já destilou óleos de 18 variedades — como alecrim, gerânio e arruda — das mais de cem plantas fitoterápicas e alimentícias que cultiva.
É no quintal da casa onde Marcela vive, localizada em área rural de Caxias do Sul, na região de Galópolis, que a matéria-prima da Apotecária da Terra se desenvolve até ficar pronta para a destilação. A poucos metros de onde são cuidadosamente colhidas, fica o ateliê-laboratório perfumado, anexo à moradia, onde estão guardados livros de botânica, materiais de artesanato e os frascos de óleos e hidrolatos que têm feito sucesso.
Para obter 20ml a 30ml de óleo, dependendo da variedade, são necessários até 40 quilos de planta. O processo leva, em média, duas horas, sendo acompanhado de perto, com vista para a mata emoldurada pela janela. A atividade representa, hoje, 60% da renda da empreendedora, que vê na preservação da prática artesanal seu diferencial.
— Quando eu vou colher existe todo um cuidado. Colheitas feitas em larga escala podem captar sujeiras, folhas e até bichinhos que vivem em meio às plantas. O óleo é uma forma de defesa e há processos que também provocam sofrimento hídrico e físico antes da destilação. Tudo isso pode não fazer diferença na composição, mas vai ter um desequilíbrio ali na parte energética que, para mim, também está conectada, não tem como separar. As pessoas que já usaram outros óleos dizem que é diferente. Isso me deixa feliz porque percebo que estou no caminho certo. E eu também percebo a diferença porque sou a maior consumidora. Uso para praticamente tudo — avalia.
Presente em feiras da cidade e região e também com a venda por entrega em Caxias do Sul, Marcela observa que o interesse em seus produtos se dá por diferentes públicos. O perfil vai desde pessoas interessadas em perfumar o ambiente até aquelas engajadas em questões relacionadas à espiritualidade, fitoenergética, aromaterapia, cosmética natural e saúde mental.
Uma das clientes é Alessandra Guerra, 41 anos, que, além de consumir os óleos para benefício próprio e de seus familiares, também os utiliza na psicoaromaterapia, área na qual atua há cerca de dois anos. A caxiense, que mora em Imbituba (SC) há quatro anos, conheceu os produtos da Apotecária pelo Instagram.
— O que me chamou a atenção e me fez buscar foi a simplicidade e a verdade na qual ela apresentava as coisas. Comecei usando para mim, sempre tenho um comigo para borrifar caso meu filho caia e se machuque, por exemplo. Atualmente, uso também na produção dos meus sprays terapêuticos. Para abundância, uso o louro; para limpeza, a arruda; nos relacionamentos, a melissa; cerimônias do sagrado feminino, o gerânio; vou intuindo o que devo colocar e usufruo da melhor forma possível — destaca.
Fazer individual com apelo à saúde é atrativo ao consumidor
Pela Serra, Angélica Brandelise, que atua como analista de articulação de projetos do Sebrae, vê surgir modelos de negócios que acompanham uma tendência mundial de consumo atrelado à sustentabilidade, bem-estar, qualidade de vida e saúde. O caminho do fazer individual, que mesmo facilitado por novas tecnologias resgata o modo ancestral, não-industrial, sem aditivos químicos, na visão dela, acaba resultando em produtos que atendem a esta demanda.
— São diversas razões que levam o consumidor a desejar este tipo de produto. Uma delas é a própria valorização do fazer ancestral, da cultura local, do fazer manual e o cuidado individual com aquilo. É algo que exige cuidado e boas práticas, claro, mas que foge à industrialização — afirma a analista.
Ela também aponta fatores como o baixo impacto ambiental gerado por atividades de menor porte como um atrativo ao consumidor que se preocupa com a preservação da natureza. Isso também se reflete na busca por produtos naturais, de qualidade e que sejam mais saudáveis, apresentando benefícios como a redução de glúten na longa fermentação ou mesmo a prevenção a longo prazo pela redução de aditivos químicos na composição.
— São oportunidades que surgem conforme muda o perfil do consumidor. A gente percebe isso na economia local e como uma tendência no mercado. A inovação com apelo à saúde — completa.
A vinificação natural faz parte deste contexto.
— Acredito que há um interesse pela técnica antiga de vinificação. Também acredito que há uma tendência mundial na procura de vinhos com menos intervenções nos vinhedos e nas vinícolas. Métodos menos intervencionistas preservam melhor as características locais de produção. O não uso de aditivos enológicos faz com que o vinho seja mais verdadeiro. Existe também uma procura por vinhos mais humanos, que falem a voz da terra. É um movimento mundial — afirma Luís Henrique Zanini, 53, proprietário da vinícola serrana Era dos Ventos.
— Um exemplo disso, foi o sucesso no nosso vinho Peverella, uma uva branca que vinifiquei de forma ancestral, isso é, elaborado de maneira antiga, com as cascas em contato com o mosto por mais de 30 dias. Ele é chamado vinho "laranja". O vinho de maceração (laranja) é uma resposta ao vinho altamente tecnológico. A Era dos Ventos fez o primeiro vinho "laranja" do Brasil em 2002 — completa o empresário, que está em Nova York pela segunda vez divulgando os produtos da marca.
Hoje, a Era dos Ventos elabora cerca de 5 mil garrafas por ano, distribuídas em nove rótulos. Uma produção toda feita de forma artesanal.