Mãos ásperas e calejadas, com a terra impregnada à impressão digital. O vigor de um corpo que trabalha de segunda a segunda, 365 dias por ano, entre o amanhecer e o anoitecer, sejam dias de sol ou chuva. Vida dedicada a preparar a terra, semear, ver brotar e cuidar, quase em uma vigília de rigor religioso. Tudo em nome dos frutos, que maduros, alimentam outras tantas vidas.
A agricultura sustenta famílias com seus frutos comercializados há mais de um século na Serra. Entre tantos desafios que a atividade impõe, há um que tem consumido dias e noites mal dormidas de muitos produtores. Na linguagem da colônia, os agricultores se perguntam: “Quem vai tocar essa propriedade quando eu morrer?” A sucessão das propriedades familiares é o maior desafio pelo qual passam os pais desses jovens que moram no interior.
– Me diz, qual é o gringo que não reclama? Eu trabalho de domingo a domingo desde que me conheço. E já era assim na época do meu pai. Se nós não reclamarmos então alguma coisa está errada – diverte-se o agricultor e técnico em enologia Jorge Luis Mariani, 49 anos, morador de Garibaldi, cuja propriedade fica no Vale dos Vinhedos.
Para Mariani, esse comportamento pessimista é uma das explicações para a saída dos jovens da colônia em busca de oportunidades na cidade.
– Meu filho sempre ouviu essa reclamação toda. Ele devia pensar assim: “Meu pai trabalha como um condenado e só reclama, tem pouca terra, pouca parreira.” Por isso, ele queria estudar e ir embora – pondera.
Mariani prossegue em sua argumentação:
– Eu comecei a ver no meu filho um comportamento de quando eu era jovem. Me formei no Instituto Federal em Bento Gonçalves, no curso técnico de enologia, em 1989. Vim para casa e disse: “Vocês estão trabalhando da forma errada. Vocês têm de pensar diferente.” Meu pai respondeu: “Te paguei o estudo até ontem, então vai ser feliz, mas não aqui, né?”
O conflito de gerações só intensificou a saída dos jovens, acredita Mariani. Depois dessa discussão com o pai, o jovem Mariani seguiu seu rumo, tentando a vida na cidade. Anos mais tarde, de volta à colônia, colhendo uvas e fazendo vinhos orgânicos, conheceu a Escola Família Agrícola, em Santa Cruz do Sul. E a partir disso, entendeu que haveria esperança na sucessão das propriedades, estabelecendo pontes entre gerações por meio da educação.
Entre 2010, quando conheceu o funcionamento da escola, até 2013, ano da abertura da unidade da Serra, foi preciso limpar bem o terreno pedregoso de dificuldades para a implantação da instituição. Atualmente, a Escola Família Agrícola (EFASerra) está localizada no interior de Caxias do Sul e já formou 51 alunos. Antes de colocar o projeto em ação, foi preciso realizar uma pesquisa diagnóstico com o perfil desse adolescente e suas expectativas para o futuro. Responderam ao questionário alunos de 20 municípios da região.
– A pesquisa apontou que 98% dos jovens do meio rural não tinham intenção em ficar na colônia – recorda Mariani.
Sete anos depois da inauguração da escola, o agricultor sente-se orgulhoso em revelar a inversão do cenário.
– Atualmente, 96% dos nossos alunos estão trabalhando na propriedade da família e entenderam a oportunidade que têm, porque conheceram a realidade, viram que têm perspectiva – avalia Mariani.
Expectativa e Realidade
Mariani viu essa boa semente frutificar em sua casa. Ele e a esposa Salete Arruda, 53, já tinham perdido a esperança de que os filhos Jorge Junior Mariani, 21 e Júlia Mariani, 17, quisessem permanecer trabalhando na propriedade da família. Hoje, a Orgânicos Mariani diversificou os produtos, está em ampliação, vislumbra atrair mais turistas, aproveitando sua excelente localização junto ao Vale dos Vinhedos.
Tudo isso porque o patriarca não descansou, de sol a sol, até ver concretizado o sonho da EFASerra, que tem contribuído intensamente na formação dos jovens agricultores, que são estimulados pelos professores a compreender tudo o que ocorre nas propriedades familiares, além de desenvolver novas iniciativas produtivas, de diversificação, manejo e tecnologia.
Jorge entrou na escola aos 14 anos, e quando saiu, aos 17, disse que um novo mundo havia se aberto diante dos seus olhos.
– Vim para casa com outro olhar, com vontade de trazer conhecimento técnico para evoluirmos. Começamos a diversificar, a plantar tomates e fazer molhos orgânicos, ampliando as fonte de renda da propriedade.
Atualmente cursando o sétimo semestre de Agronomia no Instituto Federal, diz que não pretende mais sair da colônia. Esse é o mesmo pensamento da sua irmã, a Júlia, que aos 17 anos está estudando enologia, o mesmo curso que o pai já fez.
– Gosto bastante da enologia. No futuro, quero fazer vinhos finos e espumantes orgânicos.
Mariani está feliz não apenas por ver a sua propriedade com perspectivas de futuro, mas por ter semeado educação, que, na sua visão, deveria ser uma profissão melhor reconhecida no Brasil. O melhor exemplo é o de quem faz, é por isso que o agricultor sente orgulho de citar os cursos de cada um, em sua casa:
– Minha esposa é formada em administração de empresas, eu sou enólogo, o guri é agrônomo e a guria, logo mais será enóloga. Aqui é tudo fera _ diverte-se, enquanto acomoda melhor o chapéu na cabeça, tentando disfarçar a emoção.
A diversificação no meio rural
O presidente da Emater/RS, Geraldo Sandri, argumenta que há uma complexidade maior quando se pensam em ações para manter os jovens no meio rural.
– Sucessão não é apenas ficar no campo. É a garantia de alimentos, de continuidade do fornecimento de produtos de qualidade, com os jovens trazendo novas técnicas, novas ideias, novas tecnologias, com mais gestão e, consequentemente, maior resultado. A ideia de planejar e administrar para ter bons resultado é essencial – defende.
Sandri ressalta ainda que o Rio Grande do Sul possui 2,7 milhões de jovens entre 12 e 29 anos, sendo que 350 mil (12%) estão no meio rural. Parcerias como a Escola Família Agrícola são fundamentais para um novo horizonte ao setor e também na manutenção dessas propriedades tradicionais.
– O trabalho no campo é bastante exaustivo. Por outro lado, o trabalho no meio urbano é visto como menos exaustivo do que se tem na agricultura – observa Alexander Censi, chefe do Centro de Pesquisa Celeste Gobbato, com sede em Fazenda Souza, no interior de Caxias.
Além de estabelecer pontes entre as gerações de pais e filhos, Censi diz que é preciso enxergar o campo não apenas propício para as atividades agrícolas.
– Hoje em dia, o meio rural não é apenas um local de produção de alimentos, ele também é destinado à moradia, à preservação do ambiente natural, destinado ainda ao turismo e à prática de esportes. Isso tudo dentro de um conceito de pluriatividade – destaca Censi.
Perspectivas no horizonte
No limite entre os municípios de Garibaldi e Carlos Barbosa está localizada a propriedade e a queijaria da família Lorenzon. Batizada de Queijaria Beija-Flor, a agroindústria nasceu de uma forma simples, como uma continuidade à tradição dos antepassados, que fabricavam o queijo que consumiam. Aos poucos, com a demanda crescente, o técnico em agropecuária Sérgio Lorenzon, 58, tratou da formalização da empresa e das licenças sanitárias necessárias.
Ele e o filho Gabriel Lorenzon, 18, recém-formado na Escola Família Agrícola da Serra, conduzem sozinhos a propriedade com 28 vacas leiteiras, da raça Jersey, e também a queijaria, onde produzem dois tipos de queijo, o colonial e coalho. A produção diária é de 420 litros de leite, que servem para produzir 60kg de queijo.
– Eu nunca pensei em sair do campo, porque sempre gostei do ramo. Só eu não sabia o valor que tem isso tudo aqui – revela Gabriel, apontando para a propriedade da família.
– Esse aí sempre gostou de trabalhar com o trator – brinca Lorenzon, referindo-se ao filho, que desde os 10 anos já “pilotava” a máquina, preparando a terra para o plantio.
Gabriel retoma o assunto e revela que acabou se dando conta do valor da propriedade no tempo em que estudou na Escola Família Agrícola (EFASerra).
– Claro que a escola ajudou muito, mas eu acho que hoje tenho mais maturidade para entender o que significa essa propriedade – explica.
O pai complementa a observação do filho e reconhece que a decisão dele foi importante para os investimentos no futuro.
– A estrutura da estrebaria foi feita em 1978. Se deixarmos de trabalhar com gado de leite, vamos fazer o quê? Agora, quando ele foi pro colégio agrícola, até me animei mais para investir na propriedade, comprando máquinas – explica Lorenzon.
Gabriel vai cumprir o estágio final na Emater, em um período de cerca de três meses. Depois disso, pretende focar 100% na propriedade da família, quem sabe trabalhando na diversificação dos tipos de queijos.
– Estamos testando um queijo gorgonzola. Fizemos o primeiro há uns 20 dias.
O pai, complementa:
– Há muitas opções de queijos que podemos fazer. Não queremos alta produção, mas o que tivermos condições de fazer, nós dois sozinhos, para agregar mais valor aos queijos, vamos arriscar.
Onde estudar
A Escola Família Agrícola é mantida pela Associação de pais (AEFASerra). Desde o início do seu funcionamento, em 2013, a Escola já formou quatro turmas, totalizando 51 estudantes. Em 2020, a escola teve matriculados cerca de 160 jovens de 28 municípios.
A escola tem como objetivo promover a formação integral dos jovens e o desenvolvimento do meio onde estão, além de formar uma consciência coletiva sobre a situação de seu próprio ambiente. Também valoriza as capacidades de cada um e promove o espírito de iniciativa e criatividade, trabalho em equipe, senso de responsabilidade e de solidariedade.
A Escola desenvolve atividades relacionadas à realidade dos estudantes, buscando apresentar alternativas para a permanência dos jovens no campo com qualificação, desenvolvimento do meio e geração de renda.
Para ingressar, o estudante precisa ter concluído o Ensino Fundamental e ter vínculo com a agricultura. A Escola está localizada em São Pedro da Terceira Légua, no interior de Caxias do Sul.
Mais informações:
(54) 3026.8522 e (54) 2132.5013
(54) 99619.5495 (whatsapp)
www.facebook.com/efaserra