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Foi, literalmente, escavando o solo do Mississippi na segunda metade do século 19 que o arqueólogo Charles Peabody fez uma das mais impressionantes descobertas daquela época. Não foi nada extraído do solo o que motivou as linhas mais entusiasmadas do seu relato, mas sim a força das músicas de trabalho cantadas pelos trabalhadores negros contratados para ajudá-lo. Se ali já não estava o próprio blues, estava a semente da música que viria a transformar o mundo a partir do século seguinte.
Era precisamente naquela região explorada por Peabody que estava a cidade de Clarksdale, que nas décadas seguintes, no auge das lavouras de algodão, viria a se tornar a cidade mais próspera naquele que até hoje é o estado mais pobre dos Estados Unidos, porém dono de um dos mais ricos legados culturais (qualquer semelhança encontrada em outros países neste contraste não é mera coincidência). E por suas ruas e por suas linhas de trem passariam alguns dos maiores tocadores de blues que já se teve notícia, o que ajuda a explicar seu fascínio atemporal.
Hoje com 16 mil habitantes, Clarksdale é um dos destinos mais procurados por amantes do blues do mundo todo. Além de um vasto calendário de eventos musicais, puxado pelo Juke Joint Festival, em junho – quando a população da cidade dobra devido ao número de visitantes – a cidade tem os clubes de blues do seu centro histórico como o principal chamariz, que garante música ao vivo 365 dias por ano. Entre os principais estão o Ground Zero Blues Club, fundado pelo ator Morgan Freeman, o Red’s Lounge, cuja informalidade remete às primeiras biroscas onde se tocava o blues na primeira metade do século passado, e o Bad Apple – não menor informal, uma vez que o proprietário, Sean “Bad” Apple, trabalha sozinho e ainda é o músico da casa.
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É por todos esses clubes que passam semanalmente os músicos que estarão em Caxias do Sul a partir da próxima quinta-feira, na 13ª edição do Mississippi Delta Blues Festival, que terá sua edição dedicada a Clarksdale (Clarksdale Edition). Entre os talentos que irão estrear em terras brasileiras estão a jovem cantora e guitarrista Jaxx Nassar, o veterano multi-instrumentista Watermelon Slim e o baterista Lee Williams, considerado um dos mais talentosos de sua geração. Em edições anteriores do festival já passaram Anthony “Big A” Sherrod, Super Chikan, Robert ‘Bilbo’ Walker e Terry “Harmonica” Bean, todos representando o que o blues de Clarksdale tem de melhor: o improviso, o carisma, a potência.
Um festival dedicado à cidade que melhor representa o berço do blues é um passo além numa parceria iniciada em 2019, entre o MDBF, através do seu idealizador, Toyo Bagoso, e entidades ligadas ao turismo e à preservação da herança cultural da região do Delta, como a Visit Clarksdale e o Delta Center For Culture and Learning, programa vinculado à Delta State University. Nas palavras do seu diretor, Dr. Rolando Hertz – que estará em Caxias com a comitiva e com os músicos de Clarksdale –, a entidade busca promover uma integração maior entre os turistas do mundo todo que visitam a região e seus moradores, a fim de gerar maior pertencimento e autoestima.
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Conhecendo Clarksdale
Clarksdale concentra 11 dos quase 200 pontos de interesse (landmarks) da rota turística Mississippi Blues Trail, que leva os visitantes a uma viagem no tempo e que dá a noção da importância da região do Delta para a história do blues, que mais tarde teria ainda Memphis e Chicago como cidades de igual importância em sua fase urbana (e elétrica), principalmente a partir dos anos 1940. Pelas suas ruas as placas do roteiro ajudam a indicar o endereço onde nasceu o cantor Sam Cooke, o hotel Riverside, onde morreu a cantora Bessie Smith, ou Hopson Plantation Commissary a propriedade rural onde foi inventada a colheita mecanizada de algodão – uma das razões que impulsionaram a migração negra para o Norte, quando os empregos nas lavouras começaram a rarear.
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Talvez o principal cartão-postal de Clarksdale seja The Crossroads, ou a Encruzilhada, situada na intersecção das rodovias 61 e 49. Ornamentada com guitarras que apontam para todos os lados, faz referência à lenda do pacto com o diabo que teria sido feito por Robert Johnson, o maior e mais enigmático bluesman do Delta, morto aos 27 anos em 1938. Mais do que isso, o local é emblemático devido à importância das duas estradas que fazem a ligação do Sul rural ao Norte industrializado dos Estados Unidos, para onde ocorreu a grande migração a partir dos anos 1940, quando milhares deixaram o Mississippi levando consigo, além da esperança de trabalho e prosperidade, o blues.
Uma vez garantida a foto na Crossroads, igualmente imperdível é o passeio pelo Delta Blues Museum, um museu que conta a história do blues do Delta a partir dos nomes que a construíram mundo afora, como Muddy Waters, Sonny Boy Williamson, John Lee Hooker e Charlie Musselwhite – harmonicista local que ainda reside na pequena capital do Delta, mesmo tendo conseguido romper a bolha do blues ao se tornar conhecido também pelos álbuns gravados ao lado do cantor e compositor Ben Harper.
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Além da lojinha de lembranças do Delta Blues Museum, outro lugar que não pode deixar de ser visitado para os que gostam de levar algum souvenir para casa é a Cat Head Delta Blues & Folk Art. A loja é mantida pelo tão carismático quanto enciclopédico Roger Stolle, que dedica a vida ao blues mesmo não sendo músico, mas sim um apaixonado. Na Cat Head é possível encontrar todo tipo de arte com a temática do blues, além de camisetas, livros, bonés e diversos outros itens que permitem trazer um pouco de Clarksdale na bagagem.
Pegue a estrada e desbrave o Delta
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Viajando pelas planícies cortadas pela rodovia 61, vale a visita até algumas das cidades próximas a Clarksdale e que, embora sejam ainda menores, são igualmente importantes quando o assunto é conhecer as raízes do blues. Em Indianola, por exemplo, está o B.B. King Museum, cujas dimensões destoam de quase tudo no Delta – assim como também foi destoante a trajetória do guitarrista nascido, criado e enterrado em Indianola, justamente no museu que viu ser construído em vida.
Já na cidade de Cleveland está o Grammy Museum Mississippi, museu dedicados aos músicos nascidos no estado que mais teve vencedores do prêmio mais cobiçado da indústria da música (vale lembrar que, para além do blues, o Mississippi também é berço do rei do rock ‘n’ roll, Elvis Presley, e das divas country Faith Hill e LeAnn Rimes). Em Cleveland, à beira da estrada, está também a Dockery Farms, uma antiga propriedade rural que é apontada como possível local de nascimento do blues como passamos a conhecê-lo: tocado ao violão e cantado para exprimir sentimentos profundos ou para divertir as pessoas nos finais de semana, em pequenas casas de pensão. Na Dockery trabalhou Charley Patton, músico que seria o mestre de Son House, Howlin’ Wolf, John Lee Hooker, entre outros.
Conhecer Clarksdale e seus arredores é viajar no tempo até chegar ao que ainda resta de mais profundo nas raízes do blues – e sabe-se lá até quando será possível ver de perto artistas que foram testemunhas oculares da história desse gênero que revolucionou a história da música, dando origem ao rock ‘n’ roll. Suas casas simples, comércio e serviços intocados por qualquer glamour ou gourmetização, sua paisagem tão horizontal quanto o relevo do Delta, jamais seriam um destino turístico se não fosse a força da sua cultura e do seu legado para o mundo.