Cláudio Assis tem um aparente apreço pela estética dos submundos. A sujeira, o sexo e a precariedade são elementos que costumam dar palco a grandes personagens criados pelo cineasta pernambucano. Logo nas primeiras sequências de Piedade — seu longa mais recente, que ganha estreia na Sala de Cinema Ulysses Geremia nesta quinta (16) —, o espectador se vê envolto pela penumbra de um antigo cinema que exibe filmes eróticos e disponibiliza cabines um tanto claustrofóbicas para o sexo. Mas as narrativas mais profundas do filme se passam mesmo à beira do mar, num lugar paradisíaco. É ali que o cineasta vai revelando um submundo mais ideológico do que estético, uma espécie de sujeira de espírito que, infelizmente, se conecta a um contexto bem atual.
A história se passa na fictícia cidade praiana de Piedade. Os moradores do lugar são atormentados pela chegada da empresa petrolífera PetroGreen, que pretende retirar os estabelecimentos e casas da beira-mar para poder explorar ainda mais os recursos da região. Lá vive Omar (Irandhir Santos), que se opõe às investidas do inescrupuloso Aurélio (Matheus Nachtergaele), representantes da empresa. Na outra ponta da cidade está o cinema erótico gerenciado por Sandro (Cauã Reymond), um homem à deriva de sua própria história. Ele se vê ligado a um passado desconhecido quando passa a se relacionar com Aurélio.
Em Piedade, o mar está impróprio para banho por conta da aparição de tubarões. Daí a primeira violência contra os moradores daquele local: a privação de liberdade. Depois, um outro "tubarão" surge disfarçado na pele de Aurélio. O personagem representa a ameaça vigente contra os bens naturais. Mas não só. Ele é também a personificação do burguês que se finge de simples para ludibriar o outro, do retrógrado que se esconde atrás da carapuça que lhe convém. Em entrevista realizada em agosto ao repórter William Mansque, de GZH, o ator Matheus Nachtergaele disse que Piedade é filme de presságio. Gravado em 2017, o longa antecipa muito do que o Brasil enfrenta no hoje: "Parece tudo uma grande noite, onde somos obrigados a viver enclausurados e que se passa uma grande boiada destruindo a natureza, além do renascimento de ideias mortas".
No meio desse turbilhão de assombros há uma fortaleza. Dona Carminha, interpretada por Fernanda Montenegro, é a mãe de Omar que tenta estabilizar os ânimos acirrados por conta da especulação do terreno. A presença da personagem acaba por direcionar os laços de afeto que conduzem a história. Já a presença de Fernanda, considerada a maior atriz viva do Brasil, é como um abraço no espectador, um deleite artístico que sempre faz valer o ingresso. Preste atenção na poética cena em que Carminha e Sandro conversam rodeados pela imensidão de água: "você tem olhos da cor do mar de ressaca".
Cláudio Assis também brinca com a representação das gerações em Piedade. Existe a resistência, presente num grupo de jovens ativistas que luta para chamar atenção nas redes sociais contra a PetroGreen; mas também existe a apatia da criança distraída da vida por aparatos digitais. Em algum momento, o longa parece se autodenominar como uma "carta pro futuro", talvez na esperança de que o espectador consiga identificar quem são os tubarões que rondam os seus mares.
PROGRAME-SE
- O quê: drama Piedade, de Cláudio Assis.
- Onde: Sala de Cinema Ulysses Geremia, no Centro de Cultura Ordovás (Rua Luiz Antunes, 312), em Caxias.
- Quando: estreia nesta quinta (16) e fica em cartaz até o dia 26, com sessões de quinta a domingo, sempre às 19h30min.
- Quanto: ingressos a R$ 10 e R$ 5 (estudantes, idosos e servidores).
- Duração: 98min
- Classificação: 18 anos.