Seja por 15, 20 ou 30 dias, qualquer pessoa que já tenha saído de férias já experimentou a dificuldade em retomar seu ritmo de vida normal. É natural a necessidade de passar por um período de adaptação após alterações abruptas de rotina, como dormir tarde, acordar cedo, receber chamadas que não podem ser meramente ignoradas. As novas dinâmicas cotidianas impostas pela pandemia provocam algo parecido, porém em nível ainda mais intenso devido ao estado prolongado do tal “novo normal” que abrange nosso convívio, trabalho, consumo e outros hábitos. Após quase um ano vivendo a realidade pandêmica, como iremos lidar com uma ainda tão esperada volta à normalidade do cotidiano?
Especialistas em comportamento humano apontam que a pandemia alterou nossos níveis de estresse e também a capacidade de reação a ele, e dessa forma é possível começar a explicar um pouco o que a falta de convívio social pode ter feito conosco de março de 2020 para cá. O neurocientista e professor da UCS Lucas F. de Oliveira destaca o valor de um hormônio produzido pelo corpo para entender a relação entre vínculos sociais, afetividade a estresse:
– Nós, humanos, evoluímos como grupo. Quase todos nós nos sentimos parte de algum grupo. E esse grupo foi retirado das pessoas que estão fazendo o isolamento adequado. O contato com amigos e pessoas próximas libera uma série de substâncias no nosso corpo, especialmente o hormônio ocitocina, que leva à diminuição das respostas de estresse. No dia a dia nós somos expostos a certa quantidade de estresse, mas tem isso sendo modulado com o contato social. Na pandemia, quando tu retiras o contato, a tendência natural é diminuir a produção desse hormônio e as pessoas terem um nível de estresse mais elevado. E para muita gente, o trabalho em casa significa trabalhar mais, significa ter uma reunião atrás da outra. Tu não tens contato com pessoas que poderiam reduzir o estresse, e por outro lado a carga de trabalho aumenta, elevando o estresse, às vezes até o nível da depressão.
Lucas destaca ainda a situação paradoxal que experimentamos desde que muitos de nós fomos obrigados a restringir o contato presencial, a fim de cumprir o distanciamento social: não desfrutamos dos benefícios de estarmos juntos, tampouco os de estarmos sós.
– É um paradoxo: sentimos falta de estar com as pessoas, mas ao mesmo tempo sentimos falta de estar verdadeiramente sozinhos, já que a todo momento tem uma tela nos chamando a atenção. O problema não é a tela em si: é esse “tempo todo nos chamando atenção”. Estamos permanentemente em contato virtual com as outras pessoas, só que sem usufruir do benefício desse contato, que é a liberação desse hormônio (a ocitocina). Ao mesmo tempo, também não estamos sozinhos o suficiente, porque está sempre focando em alguma coisa do mundo externo, e pouco focado para dentro – reflete.
O pesquisador não considera, no entanto, que a partir do momento em que se possa considerar superada a pandemia, teremos como reação compensar toda a falta de convívio acumulada por quase um ano, numa espécie de busca pelo tempo perdido:
– Acredito que sairmos desse período haverá a sensação de uma novidade, que fará com que algumas semanas as pessoas queiram sair mais de casa, ir para a rua e ver pessoas. Um momento de euforia. Mas após esse tempo, a tendência é que as pessoas retornem para o padrão desenvolvido durante a pandemia, porque esses hábitos transformados em rotina costumam se manter.
Igualmente fundamental para entender a espécie de reprogramação mental que passamos após um período de privação de muitas atividades prazerosas é o sistema de recompensa, circuito cerebral que processa as informações relacionadas à sensação de satisfação, influenciando nossas tomadas de decisão. A psicóloga caxiense Juliana Zen, especialista em neuropsicologia, vê com preocupação a descalibragem desse sistema durante a pandemia.
– Como as pessoas estão afastadas de muitas atividades que dão prazer, a gente observa que a comida tem sido o principal sistema de recompensa, assim como permanecer por muito tempo nas redes sociais. São atividades prazerosas para o cérebro, mas não para a saúde. E acabam virando um mau hábito. Se a gente vai ter dificuldade de se readaptar à vida normal num período pós-pandemia? Acredito que não, pois às coisas boas a gente se adapta com facilidade. Mas o prazer da comida e da conexão o tempo todo precisam ser ajustados, assim como os medos trazidos pela pandemia, que estão arraigados. Vamos precisar sair desse ciclo automático, utilizando o cérebro pensante, que se sobrepõe à área da recompensa, mas que é prejudicada pelo estresse. O que pode ajudar é a atividade física, a boa alimentação, boas noites de sono, alimentação saudável e boa vida social, que hoje está prejudicada – destaca a psicóloga.
O aumento do tempo de exposição às telas, especialmente durante a pandemia, não deve preocupar somente adultos. Pelo contrário: as crianças, por terem menor capacidade de refletir conscientemente sobre suas ações, estão mais propensas a desenvolver a nomofobia, como é chamado o vício em telas. Para a educadora e especialista em neurociências aplicadas à Linguagem e à Aprendizagem Raquel Ely, pais e responsáveis devem estar atentos às reações de suas crianças, especialmente entre 5 e 7 anos, quando chegar o momento de voltar à escola.
– É algo para prestar a atenção, principalmente nas crianças menores, que reforçaram seus vínculos com os pais nesta pandemia. Crianças um pouco maiores podem estar ansiosas para reencontrar e brincar com os colegas, e essa motivação irá ajudá-las a ficar longe do celular. Mas as menores podem ter mais dificuldade de entender o momento de voltar para a escola. É algo que a gente sempre percebe no retorno das férias, mas agora estamos falando de um período bem mais prolongado. Ficar em casa já virou rotina, e toda quebra de rotina requer um manejo para sair da zona de conforto e voltar ao que era o nosso cotidiano. Temos que conversar com elas destacando os pontos positivos desta volta à escola, que é legal para elas estar com outras crianças. Também temos de prestar atenção nos sintomas que permitem perceber a diferença de um simples desconforto para a dependência tecnológica infantil, que são sudorese, taquicardia, sentimento de frustração e ansiedade – observa.
Raquel também faz uma provocação aos adultos:
– Será que nós também não estamos viciados em nossos aparelhos tecnológicos? O medo de ficar sem bateria no celular, de esquecê-lo em casa quando saímos, de não ter visualizado uma mensagem. Se para as crianças o celular está muito ligado ao lazer, para os adultos está muito ligado ao trabalho, e também temos de nos policiar quanto aos mesmos sintomas.
Na mesma linha da colega, o neurocientista Lucas F. de Oliveira ressalta que tão ou mais grave quanto a pandemia pode ser o seu reflexo nas relações de trabalho, contribuindo como um gerador ainda maior de distúrbios mentais:
- Um legado preocupante da pandemia é o fato dos empregadores terem descoberto que, através da tecnologia, eles conseguiram fazer as pessoas trabalharem mais: mais reunião, mais cobrança por produtividade, mais demandas enviadas pelos meios eletrônicos, mais mensagens de trabalho nos finais de semana. E isso vai ter um impacto, porque não é saudável.