A educadora social e estudante de Serviço Social, Juçara de Quadro, 60, faz questão de relatar pelo menos duas mortes de homens negros em Caxias do Sul. As imagens são recorrentes no seu pensamento e provocam, ainda hoje, frustração, impotência e tristeza. Por trás de cada vida ceifada, havia um nome, uma história abreviada e um sonho não realizado. A primeira morte dentre tantas que ela gostaria de trazer à luz da memória, é a do mestre de obras José Maria Martins, na época com 42 anos, na madrugada de 11 de novembro de 2000.
Leia ainda
"Nosso irmão Floyd morreu dizendo que não conseguia respirar", diz presidente do Comune
"Quando o policial coloca o joelho no pescoço do Floyd, expõe a lógica da desumanidade", diz professor caxiense
"Se você pudesse escolher, seria negro?", provoca a produtora cultural
"Não podemos nos conformar com racismo, preconceito ou discriminação", diz diretor do MobiCaxias
Segundo o texto da reportagem do jornal Pioneiro (25 de outubro de 2010), por conta do julgamento de dois brigadianos e um ex-PM, acusados de matar José Maria, os jornalistas Daniel Corrêa e Guilherme Pulita, assim relataram:
"Zé Maria, como era conhecido o mestre de obras, preparava-se para entrar em sua Quantum ano 1997, estacionada no Centro, quando um motorista imaginou que ele estivesse tentando furtar o veículo. O homem informou a suspeita a um PM. A informação chegou ao conhecimento da central da Brigada Militar (BM), e Zé Maria, um dos líderes da comunidade do bairro Fátima, começou a ser perseguido pelas ruas. (…) Os policiais disseram que trocaram tiros com Zé Maria. O mestre de obras morreu com dois tiros — na axila esquerda e nas costas —, quando estava a poucos metros de casa".
— O carro dele ficou todo crivado de balas. Viram um negro, malvestido, entrando em uma Quantum e pensaram que ele estivesse roubando o carro. Só que ele vestia roupas de trabalho, sujas, porque trabalhava como pedreiro, queriam que ele estivesse vestindo o que? O preconceito já partiu de quem ligou para a polícia, que deve ter pensando: "esse negro deve ter roubado esse carro" — recorda Juçara.
A estatística da violência é perversa, sobretudo quando o racismo é vetor do crime. No dia 7 de fevereiro de 2015, uma partida de futebol terminou com a morte do neto de Juçara, o jovem de 20 anos, Aldair Inácio da Silva. Conforme relato do jornal Pioneiro à época, "De acordo com amigos que presenciaram os disparos, os tiros teriam sido efetuados pelo pai de um jogador do time adversário após um desentendimento durante a partida. O crime ocorreu por volta das 20h30min na Rua Ludovico Cavinatto, bairro Santa Catarina".
— Infelizmente, nessa noite eu acabei entrando para as estatísticas da violência conta jovens negros. Porque há um genocídio do Brasil contra os jovens negros, e só não vê quem não quer. É uma sensação de impotência, sabe? É como se a mensagem que fica é a de que "eu vou ser mais uma a morrer" — diz, inconformada.
Juçara também reconhece que há um racismo institucionalizado no Brasil, assim como acusa o professor Lucas Caregnato. Para provar seu ponto de vista, Juçara recorda de uma palestra que viu, certa vez, na Brigada Militar, em Porto Alegre.
— O policial que estava dando o curso e escreveu um esquema, no quadro, com as palavras: "nascimento, igreja, educação e morte". Ele dizia: "Negrinho nasce, a igreja tenta mudar ele, mas não consegue, daí o moreninho vai pra escola e também não dá. O que resta é matar". Ele disse exatamente assim, fazendo até um desenho para explicar — conta.
Atualmente, Juçara integra o Movimento Negro Unificado, em nível nacional, onde ocorrem debates de políticas públicas. No entanto, ela critica a posição do atual governo, visto que a Fundação Zumbi dos Palmares, está sob a presidência de Sérgio Camargo, que diz, entre tantas outras coisas, que o movimento negro de uma "escória maldita".
— Eu não sei o que vai acontecer, mas vamos continuar a morrer de forma violenta, porque as vidas negras não importam. É como diz aquela letra da música da Elza Soares: "A carne mais barata do mercado é a carne negra" — dispara Juçara.
Leia também
Teste alguns movimentos mais tradicionais do ioga
Grupo Zingado apresenta duas atividades online neste fim de semana
Sede da Guarda Municipal de Caxias recebe revitalização com grafite