Eu ainda não assisti a’O Poço, não arrumei minhas gavetas e não fiz nenhuma receita digna de foto em redes sociais. Não fiz yoga, nem pilates. Não estou aperfeiçoando meu italiano com lições online, tampouco acompanhando as aulas mais diversas que meus amigos têm dado. Não coloquei as leituras em dia — e nem tenho a expectativa de fazê-lo em algum momento — li basicamente poesias recomendadas, como Lua na Jaula, da Leducha Spinardi que o Carlinhos me deu e já assinalou a que mais teria a ver comigo: “aos quarenta — é noite?”. Mas não vou me cobrar por isso.
Fiz um desenho. Cantei com um monte de músicos que eu admiro numa corrente virtual — e eu nem sei cantar! Descobri que tenho um vizinho afinado. Fiz um pouco de faxina, mas não essas que as pessoas andam fazendo, a la Marie Kondo, de guardar o que traz boas lembranças para deixar a energia fluir. Faço pelo menos duas reuniões diárias por vídeo e não sei quantas conversas individuais.
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Tenho trabalhado mais do que nunca, um clichê para quem está em casa e precisa continuar a fazer entregas diárias, além de manter a esperança para driblar as frustrações. Temos um controle pífio sobre grande parte das situações — com treino e sorte só conseguimos controlar nós mesmos.
Falo com um monte de gente querida, não abraço ninguém. Paralelamente, exercito a respiração, porque ela mantém a mente serena (olha a autoajuda aí, gente!). Ando de pés descalços, uma das coisas que adoro, há dias. Ficar com pezinhos de fora é metáfora de como — nós, os privilegiadíssimos — não precisamos de quase nada do que temos. Eu adoro sapatos desde sempre e, como calço 33 e o número não é tão fácil de encontrar, passei boa parte da vida comprando todos os que achava pela frente. Resultado: por mais que eu doe vários pares com regularidade, eu ainda poderia calçar uma centopeia. E quem precisa de tanto?
Poderia dizer que meu isolamento social, que completa duas semanas neste domingo, tem sido um processo interessante de autoconhecimento. Mas soaria falso, porque busco o autoconhecimento há um bom tempo. Ainda assim, senti medo do que está por vir e, paradoxalmente, conheci um lado meu muito tranquilo. Acho um saco ter que interagir com as pessoas apenas em conversas virtuais e telefônicas. Bauman escreveu, anos atrás, que a tecnologia tem um papel decisivo para fomentar o individualismo. Para ele, os celulares ajudam na conexão com quem está distante, mas, sobretudo, permitem preservar essa distância. Aposto que, atualmente, é tudo o que não queremos.
Que esse isolamento sirva, ao menos, para repensarmos os supérfluos e valorizarmos o essencial. Que as pessoas saibam o quanto são importantes na nossa vida, seja em casa ou no trabalho. Que entendamos que estar junto não é estar perto. E que as mensagens de amor não fiquem para amanhã, porque o presente é tudo o que temos.