Tudo começou em dezembro, talvez um pouco antes e se estende indefinidamente.
Você se dá conta de que não precisava mais daquela mala velha, socada atrás da porta de um dos quartos. Então você pensou: é vou doar. Você abriu a mala e encontrou uma bola de futebol murcha, o uniforme de quando você jogava semanalmente, umas meias, uns livros de culinária, "Cortes de carnes especiais" – faz um ano que você parou de comer carne – um porta-retratos quebrado, um grampeador, uma pedra – aquela pedra era bem importante, você lembra de tê-la guardado, porque era uma relíquia, um pedaço do muro de Berlin, quem sabe. Você continua tirando coisas da mala, um metro de chita, uma peruca, um conjunto de baixelas? Uma capinha de celular, uma agenda eletrônica, um manual de fotografia, uma apostila para concurso público. Quando será que você pensou em fazer um concurso público? Seria aquela apostila sua realmente?
Você começa a achar aquilo tudo muito estranho. Fecha a mala e a recoloca atrás da porta. É melhor começar por coisas mais simples, como gavetas. Gavetas são menores e menos conflituosas. Então você abre uma das gavetas do móvel da cozinha e retira um conjunto de descansadores de facas em forma de cachorrinho e se pergunta de onde saiu aquilo. Você abre mais a gaveta, porque ela sempre emperra na metade, mas como é dia de faxina, faz-se necessário abri-la por completo. A gaveta vem para fora e você vislumbra uma coleção de caixas de fósforo, você sempre compra caixas de fósforos porque nunca acha aquela que deveria ficar ao lado do fogão perto do isqueiro que não faz uma mísera faísca. Seu fogão é elétrico, claro, mas os acendedores pararam de funcionar tem um ano já e duas bocas estão completamente inúteis. Você cogita mandar o fogão para o conserto, melhor, cogita comprar um fogão novo. Pegador de massa amassado, pregadores de roupa, um amolador, socador para caipirinha, um quadrinho de Julia Child empunhando uma faca. Você lembra que nenhuma das suas facas cortam sequer uma salsicha vegana. Você começa a amolar suas facas.
E desiste. Porque todos estão ao seu redor estão fazendo a contagem regressiva para o ano novo. Feliz 2018. Brindes e saudações pula sete ondas e volta a amolar facas. Você arrasta a mala para fora do ano passado e diz que de hoje não passa. Você liga para instituições que recebem doações, abre o armário e pega todas as calças jeans, sapatos, camisetas que não usa mais e enfia dentro da mala. Você arrasta a mala mais uma vez, agora para fora do seu apartamento, na saída, devolve as baixelas e pega o conjunto de petiscaria que nunca usou.
A instituição tem um brique beneficente.
Você volta do brique com uma mesa e uma cadeira.