
Foi através de um gesto de construção da própria memória afetiva que Antônio Turella, 69 anos, criou, unicamente através de suas lembranças, uma réplica de madeira da casa onde nasceu e cresceu com os pais e 20 irmãos, na comunidade de Água Azul, no distrito de Santa Lúcia do Piaí. A morada original, demolida em 1966, ganhou nova forma através de delicados detalhes em uma estrutura montada por pequenos pedaços de madeiras.
Sustentada por pregos e lembranças, a réplica ainda conserva, na fala de Antônio, um pouco dos 18 anos que viveu nela junto com os familiares. A casa respeita a originalidade. Portas, janelas, telhado e até a tranca, que protegia todas aquelas vivências unidas dentro de um mesmo espaço, estão retratadas.
– Eu não tinha nenhuma foto da casa, fiz tudo a partir da minha memória. Acordei um dia e decidi fazer. Fui puxando da cabeça tudo o que sabia, e aos poucos lembrei de tudo, do quarto, da cozinha. Eu fiz até a mesa – conta, animado.
Nascido em uma família pobre, Antônio é filho de Mansueto Turella e Irma Anna Zini Turella, imigrantes italianos que vieram para Caxias por volta de 1915. Ele conta que os pais se conheceram durante a juventude, já no Brasil, quando Irma voltava da igreja aos domingos e, percorrendo 10 quilômetros até a casa, encontrava Mansueto no caminho. Os dois casaram-se na Igreja de Santa Lúcia do Piaí em 9 de julho de 1936, e foram morar em Água Azul, onde tiveram os primeiros oito filhos.
Um espaço importante na memória de Antônio é ocupado pelo avô paterno, de quem a família herdou a casa:
– Eu não o conheci. Não sei se era magro, gordo, alto, baixo. Só sei que era muito brabo, foi o que me contaram.
Por trás das portas
Dentro da casa, diferentes narrativas eram construídas através das vivências que se cruzavam todos os dias. Lá, durante as noites, as irmãs, depois do jantar, costuravam roupas com uma máquina de mão – que ainda existe e pertence à família – e faziam tranças com palha de trigo, as dressas, que, depois terminavam em chapéus na cabeça dos irmãos. Na época, quando ainda não havia luz elétrica na casa, todas as histórias eram iluminadas a vela e a querosene:
– Tínhamos algumas dificuldades. Meu avô fazia cestas de vimes para a colheita das uvas, e buscava taquara no mato para as cestas da colheita de milho, batata, arroz e feijão. Com o trabalho dele e do meu pai, conseguimos comprar dois bois e uma carreta.
Com a ajuda dos filhos, as condições da família melhoraram. Em abril de 1978, a casa finalmente foi iluminada por luz elétrica. Para Antônio, as condições em que ele e os irmãos cresceram, apesar de difíceis, foram essenciais para a formação pessoal:
– A herança que os nossos pais deixaram é de muito orgulho para todos nós. Eles nos ensinaram muito bem o significado da palavra honestidade.
Antônio e a maioria dos irmãos não tiveram condições de estudar, assim como os pais. Entretanto, ele reconhece a trajetória do pai, à medida em que se lembra das dificuldades da época.
– Meu pai disse que sabendo escrever meu nome era o bastante. Eu lembro que ele mesmo só sabia escrever isso. Mas na verdade, ele não escrevia, ele desenhava o nome dele – lembra.
A memória sobre o movimento de mãos que o pai realizava para desenhar o nome mostra a força que as recordações podem ter.
– Quando lembro, valorizo minha história – conta Antônio.
Família
Os irmãos de Antônio são Inês, Nair, Nilda, Dalva, Lurdes, Leda, Tereza, Mário, Ana, Daniel, Nestor, Diva, Paulo, Olinto, Sérgio, Marisa, Ivan, e um menino que morreu dois dias após o nascimento.
Um artista de si mesmo

Pai de Débora, 37 anos, e Patrícia, 39, Antônio trabalhou como caminhoneiro durante 29 anos e meio. Aposentado desde 2012, passa, desde então, a maior parte do dia em casa, com a mulher, Teresa. Para construir réplica que exibe com orgulho na foto, foram necessários três meses de trabalho físico e emocional:
– Foi difícil me lembrar de tudo. Mas eu ficava sozinho e voltava para aquela época. Refiz a casa inteira desse jeito.
Unidos pela memória afetiva, lado a lado, a casa e Antônio guardam impressões sobre a vida e os espaços.
– Eu não gosto de manter a casa guardada. Acho que tem que ser mostrada. Algumas pessoas não ligam, mas outras me param na rua e me parabenizam pelo trabalho. Eu fico feliz com isso.
Hoje, a família que cresceu naquela pequena casa está ainda maior. Antônio não vacila ao enumerar, todos os descendentes de seu avô:
– Somos em 18 filhos, nove noras, sete genros, 39 netos e 18 bisnetos.
A importância da casa vai além da beleza e dos pequenos detalhes refeitos. Ela é um lembrete da força da vivências de uma pessoa e da importância em voltar o olhar para dentro de si.