Uma cena do filme "Flores raras" me marcou muito: Elizabeth Bishop chega ao Brasil, precisa preencher um documento e escrever sua profissão, ela pensa por alguns segundos antes de completar o campo vazio com a palavra poeta.
A dificuldade para assumir-se escritor, poeta, artista, não é banal.
Na semana passada, faleceu João Gilberto Noll, um dos maiores escritores brasileiros. Meu primeiro encontro com o Noll foi tardio: canto de prateleira no chão do Arco da Velha, li "O cego e a dançarina". Lembro ter pensado que as pessoas deveriam conhecer aquilo. Mais tarde li "A fúria do corpo", o "Quieto animal da esquina", entre outros que me tiravam o chão, porque tudo naquelas páginas era meio ação meio sonho. Até que o deserto onírico de "Rastros do verão" foi parar no corpus da minha tese. Tive encontros generosos com o Noll no doutorado. Conheci a sua leitura performática e litúrgica, sua lentidão de movimentos e seu sorriso acolhedor. Poderia ele próprio ser um de seus personagens: meio ação meio sonho.
Dentre os textos de homenagem que ele tem recebido, um me deixou muito triste, porque ali estava uma verdade feia: o homem morreu no descaso, na indigência cultural. Na semana em que ele morreu, eu falava com o Germano da livraria, que tentava viabilizar uma oficina do Noll por aqui. O custo estava alto. Sugeri que tentássemos alguma instituição para bancar ou patrocínio. E contei ao Germano que o Fernando Ramos, da Festipoa, tinha me dito uma vez que o Noll, um dos maiores escritores brasileiros, vivia "franciscanamente". Não deu tempo de verificar patrocínio e o Noll se foi. Ele estava dando uma oficina na Aldeia em Porto Alegre. A Nanni Rios, responsável pelo espaço e pelo convite, foi bater na porta da casa dele para saber o que tinha acontecido, afinal, ele nunca tinha sequer se atrasado para um compromisso. Pela manhã mandei mensagem à Moema, amiga minha: tu viu que o Noll morreu? Sim, ela respondeu e ficamos conversando sobre o significado de ser escritor e sobre o significado de ser João Gilberto Noll nos dias que se sucederam. Cinco Prêmios Jabutis, escritor residente na King's College em Londres, professor convidado em Berkeley, prêmio da APCA, obra imensa, mas não é apenas isso. É muito mais. É a falta de reconhecimento em vida, não digo admiração, mas pergunto, como viver sendo escritor?
Outro dia eu fui dar entrada nos papeis do meu casamento, e ali, questionada sobre minha profissão, hesitei. E perguntei à minha namorada o que eu deveria escrever. Ela disse: escritora, você precisa se reconhecer. Eu fiquei pensando nos convites maravilhosos que têm surgido na minha vida, em função da literatura, e pensei também que há alguns meses nos enforcamos para pagar o aluguel e as contas se acumulam. Reconhecimento? De que maneira nos reconhecemos e aos outros?
Esta não é uma discussão banal e nem pode ser.