Eu não sei descrever o som de um míssil, nem a cor, nem o risco, nem a destruição que causa. Eu não sei mensurar, não sei prever, não sei como é o peso do concreto em ruínas sobre o meu corpo. Não sei nada disso. Nem bala perdida.
Estive na Universidade de Brasília com Julián Fuks e Michel Yakini. O debate era sobre lugares de resistência na literatura. O primeiro contou, dentre muitas coisas, como foi participar de uma ocupação em São Paulo. Ele foi convidado para escrever sobre e ficou um tempo conversando e observando as dinâmicas de morar em lugares antes abandonados que agora abrigam muitas pessoas. Compartilhar espaço.
O segundo contou como é organizar saraus de poesia nas periferias de São Paulo e como é dar aulas na Fundação Casa, contou que viaja bastante para experienciar mais e mais trocas com outras pessoas e disse que, mesmo fazendo esse trabalho, esse trabalho de levar poesia, de fazer o jovem pensar, ele não se sente responsável por uma mudança, muito menos se põe na posição de herói. Na real, ele disse que na hora do aperto, na hora que o bicho pega mesmo, ele só pode fazer uma coisa: pedir proteção. E falou isso com a mão no peito.
Eu não sei o que é morar numa ocupação, nem mesmo a convite, e eu também não sei como é viver na periferia de uma grande cidade. Depois da fala do Julián sobre ocupar, uma estudante, mulher negra, perguntou sobre a utilização do verbo ocupar. Ela disse que ocupar não poderia ser uma ação temporária, disse que ocupar, como ela estava ali naquela universidade, deveria ser físico e permanente. Disse que algumas ocupações precisam ser irrevogáveis. É verdade. Eu não pude concordar mais.
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Minha fala foi no sentido da visibilidade das minorias na literatura e a necessidade de apoiar algumas etiquetas até que elas não sejam mais necessárias, ou seja, até que a ocupação de um espaço seja definitiva.
Ocupar e resistir. Mas como? Como resistir a armas químicas? Como ocupar escombros? Como conseguir que o corpo dilacerado resista? Como ocupar espaços onde a intervenção do poder viola seus direitos, viola seu corpo, viola suas vontades, como? Não há cidade, não há água, não há energia, não há comida, só há gente. Mais de quatrocentos e setenta mil mortos. Só há gente.
Eu fico pensando se essas feridas algum dia vão sarar, essas feridas de Aleppo ou essas feridas daqui, das pessoas ao nosso lado, talvez de nós mesmos. É nessa hora que, como o Michel, eu coloco a mão no peito e também peço proteção e digo baixo: "Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano."
Mas não sei nada disso.
Travessia.