Estou cego. Diz a personagem de Saramago logo no início do romance Ensaio sobre a cegueira. Uma cegueira branca, um mar de leite, um nada na frente dos olhos de porcelana, incapazes de perceber o entorno. Os habitantes da cidade vão ficando cegos, e dentro dessa penúria aflitiva, que cessa a visão no meio de rotinas e afazeres banais, a cegueira se alastra e as pessoas se encontram incapazes de viver juntas. Todos infectados. Todos apavorados.
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Na semana passada eu estive num encontro de escritores de língua portuguesa, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Portugal, Macau, Guiné Bissau, entre outros países, além de outros escritores que estavam ali também pelo intercâmbio cultural em línguas diferentes e vindos da Austrália, Turquia, Taiwan, Irlanda, França, Goa, Suíça, Hong Kong, Singapura, entre outros. Tentávamos nos compreender e em pequenos e grandes encontros, falamos muito sobre literatura e também sobre nossos países.
Todos se interessavam muito sobre que diabos está acontecendo no Brasil e como aquilo era possível. Estavam preocupados com a ascensão da extrema direita (no mundo inteiro) e se perguntavam como as pessoas podiam estar dando crédito a esses falsos salvadores. Me inquiriam sobre como o povo estava lidando com a situação da corrupção descarada no Brasil. O povo, esta entidade, que quando mencionada soa como uma massa uniforme, mas que na realidade são milhões de cacos, estilhaços de vozes, reivindicações e desejos. Fui tateando alguma explicação, mas não funcionou. Então contei eventos do nosso passado recente. Eles me questionaram se a reforma da previdência era real e era mesmo naqueles moldes e se o teto para os gastos com a educação estaria mesmo congelado por vinte anos e estarrecidos não acreditaram quando lhes mostrei fotos de alunos e professores nas manifestações agora na USP, na UERJ e, em 2015, em Curitiba. "Esses são professores?" – me perguntou um escritor ao ver a foto de uma senhora com a cabeça ensanguentada. Sim. “Eles riem na cara de vocês e vocês não veem”. De repente essa brancura leitosa se instalou sobre meus olhos, fiquei tão aflita quanto os cegos do Saramago. "Não é possível que o Brasil não tenha meios". Pisquei algumas vezes e minha visão voltou. Respirei com certo conforto e, tão longe de casa, pensei a sério sobre estar no mundo. Seguimos a conversa por dias.
"Quantos cegos serão preciso para fazer uma cegueira?" , pergunta Saramago. A metáfora nos atravessa em diversas direções. Quantas vezes não fomos cegos devido à impertinência, à arrogância, ao egoísmo, à insensibilidade, à indiferença, à ganância? Isso não é sobre a visão-sentido, mas sobre entendimento do outro e deste outro no mundo que compartilhamos. No livro, a cegueira é metáfora sobre os horrores que vivenciamos, mas escolhemos não ver. Desintegram-se as concepções de humanidade e cada vez mais aparecem esses olhos leitosos por aí, para os quais nada mais existe, a não ser o desespero de suas urgências. Não podemos ser mais um ou uma a não enxergar. Precisamos tentar compreender o que se passa junto daqueles que sempre estiveram dispostos a ver o outro.
"Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara". O olhar é uma espécie de conserto, um modo de tentarmos reparar a sociedade e o mundo em que vivemos. Contar a história para questionar a história para compreender a história para por fim mudar a história.