Gustavo Guertler, editor da Belas-Letras, não tem medo da crise. Com oito anos de estrada, a editora de Caxias do Sul lançou este ano 33 novos títulos, e comemora os 100 mil exemplares de um de seus maiores sucessos, O Papai é Pop, de Marcos Piangers. O segredo? Saber se reinventar, estar atento às tendências e buscar proporcionar novas experiências aos leitores, ensina Guertler nesta entrevista.
– Hoje, o meu concorrente não é outro livro. As pessoas só vão parar para ler se o livro for melhor do que conversar no WhatsApp ou acessar o Facebook. Esse é o grande desafio dos editores, fazer livros que façam com que as pessoas prefiram ler a fazer outras atividades.
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A questão, acrescenta, não diz respeito só às editoras, mas à cadeia editorial como um todo:
– As livrarias têm de se reinventar, os editores e os escritores também.
Além disso, avalia, existe muitas vezes uma desconexão e uma falta de sintonia entre o que as livrarias oferecem e o que as pessoas querem ler.
– É preciso entender que as pessoas mudaram, e as livrarias também tem de mudar, assim como a maneira como as pessoas escrevem – sentencia.
Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista:
Como você vê o cenário editorial neste momento?
Gustavo Guertler: Existe uma queda nas vendas, e não é só dos livros, é de qualquer produto, seja da área cultural ou não. Por outro lado, estão sendo criadas várias oportunidades de negócios. Analisando a lista de mais vendidos, realmente está vendendo menos quantitativamente; por outro lado, está tendo uma venda que é no mínimo 40% maior em e-books. Acredito que tenha a ver com o cenário econômico e esse cenário influenciou o aumento da venda de e-book, que é mais barato. O mercado cultural tem grandes oportunidades, inclusive neste momento de crise. Mas elas estão fora do mercado de varejo tradicional, ou seja, livrarias. As nossas livrarias estão vivendo uma crise de identidade, que a crise só agravou. Elas precisam rever seu negócio, assim como as editoras, porque a maneira como as pessoas leem hoje é diferente. E todo o mercado literário tem de se reinventar.
Como as editoras podem se reinventar?
As editoras têm de entender que o livro não pode ser um fim em si mesmo. Ele tem de ser uma plataforma, pois é mais uma opção que o consumidor tem. O livro não compete mais com o livro, ele compete com o Netflix, o Spotfy, o Facebook, com uma série de outras plataformas de consumo de conteúdo que são superatraentes. A grande vantagem do livro é que todas essas outras mídias dependem de conteúdo para viver, e o livro tem isso. Então o livro tem ainda um grande potencial comercial, se conseguirem entender que ele é uma forma de apresentar um conteúdo, as editoras conseguem se reposicionar. O livro tem de ser uma extensão de várias outras coisas que as pessoas consomem. Por que leio A Guerra dos Tronos? Porque assisto uma série, e vice-versa. O livro tem de entrar numa cultura de convergência.
E as livrarias?
Embora tenha muitas livrarias fechando, tem outras crescendo. É importante que procurem analisar se o problema não tem a ver com o modelo de negócio adotado. As livrarias não podem mais vender livro pelo preço, focar em "eu sou a livraria mais barata da cidade". Porque a livraria mais barata da cidade vai fechar. Se eu quero preço, eu vou pra internet. Vou numa livraria para encontrar pessoas, para ter experiências diferentes. Quando eu falo em reinventar a livraria, falo em reinventar a experiência que o leitor tem com o conteúdo, com o livro. Há muitos casos de livrarias que estão dando certo. E curiosamente as livrarias que mais dão certo são livrarias pequenas, mas que têm coisas diferentes. As livrarias precisam de criatividade. É o que está acontecendo com todos os negócios, estão passando por um cenário de ruptura dos modelos tradicionais.
Nos últimos anos, o mercado literário vem vindo com ondas: livros eróticos, de colorir, de youtubers. Qual deve ser a próxima?
Se eu soubesse a resposta... (risos) Todo o meio cultural tem se alimentado de tendências, o livro, o cinema, a TV. Era uma coisa que antes víamos mais da moda. Quando o mainstream consome determinado produto, é natural que outros produtos derivem daquele, e o livro entra nisso. Hoje eu me dedico mais a estudar tendências do que a publicar livros. Nisso entra um pouco aquela ideia de se reinventar, pensar o livro do futuro, o que as pessoas vão querer ler, o que vai interessar para elas no futuro.
E tem como antecipar isso?
A gente recebe sinais geralmente por meio de grandes influenciadores. Por exemplo, se ano que vem a HBO vai lançar uma série sobre tal assunto. Há temas muito latentes hoje, como feminismo, empreendedorismo. São sinais que vamos aprendendo a ler. E tem outras coisas completamente imprevisíveis, os livros de colorir talvez entrem um pouco nessa categoria, foram um fenômeno que começou e acabou muito rápido. Vivemos trabalhando com coisas que achamos que não vão dar certo e dão, e o contrário também. É uma bolsa de apostas, lidamos com um mercado cada vez menos perene, em que as tendências se processam num ritmo cada vez mais rápido e se esgotam rápido também.
É preciso, então, estar atento ao que está acontecendo?
Quando uma tendência está próxima de acontecer, já a perdemos. É preciso antecipar. O trabalho do editor hoje, e do escritor também, tem um pouco disso. Não é à toa que a Natalia (Polesso) ganhou um Jabuti. O livro é excepcional, mas tem de estar no momento certo, também. Tudo se resume na palavra Zeitgest, captar o espírito do tempo. Qualquer pessoa que vive da cultura precisa entender o espírito do tempo.
Você esteve recentemente na Feira do Livro de Frankfurt. Como está o clima no mercado literário mundial?
Eu acho que a gente vive uma situação particular no Brasil, desse pessimismo. (Lá fora) ninguém está estourando champanhe, mas há um otimismo saudável, no sentido de que hoje tem um cenário, nos Estados Unidos, de crescimento das livrarias independentes. Teve um primeiro momento, anos atrás, de fechamento, mas agora voltaram a crescer por uma série de fatores. Um deles é justamente porque essas livrarias estão se reinventando, se aproximando mais dos leitores, e também tem um fenômeno nos EUA chamado new localism, de as pessoas consumirem produtos dos lugares onde vivem. No Brasil isso está começando também.
Não tem, então, aquela coisa de "santo de casa não faz milagre"?
Acho que não. Se existe, é um pouco culpa nossa, dos editores, dos escritores, das livrarias. Cabe a nós criar produtos e programações atraentes para que as pessoas consumam aquilo que a gente está produzindo. As livrarias que conseguem criar uma experiência de leitura acabam atraindo as pessoas de uma maneira afetiva, as pessoas criam laços com a livraria. É uma tendência da qual podem se aproveitar, de transformar-se num lugar mágico, no qual eu vou porque vou viver uma experiência que nenhum outro lugar vai me oferecer. E isso passa pela profissionalização, a grande verdade é que não se está preparado para as mudanças que estão acontecendo. Voltando então à pergunta anterior, eu acho que o cenário global em relação à leitura é muito otimista, porque nesta era de informação rápida, cada vez mais o conteúdo em profundidade tem valor. A grande diferença é como a gente oferece esse conteúdo de uma maneira atraente. O livro não perdeu o seu valor, só precisa ser apresentado de outra forma.
A literatura de Caxias conquistou recentemente vários prêmios. Isso significa que ela está mais madura, com potencial para extrapolar a região, o Estado?
Sim. Tem muitos talentos na região com condições de atingir um patamar mais alto. A gente está sempre de olho, há muitos talentos, a grande dificuldade é um autor romper essa barreira da região, porque é um mercado muito competitivo e com uma série de particularidades que muitas vezes os escritores não estão preparados para enfrentar. A função do editor é tentar guiá-lo por esses caminhos, só que é muito difícil. Hoje, para você ser um escritor reconhecido não basta ter um livro muito bom. Isso é só o começo.
O que precisa, então?
Resumindo, muito trabalho duro. Precisa ter, como o Gandhi dizia, uma vontade indomável de dar certo. Dedicar a vida àquilo, realmente querer demais, e aceitar muitas possibilidades de fracasso. Ser bem sucedido com o livro é uma aventura de alto risco, que não depende só das tuas habilidades. Tem de ter muita força de vontade, trabalhar muito duro e planejar tua carreira, é uma coisa que eu bato muito na tecla, planejar o que vai fazer. Não adianta ter um ótimo livro se as pessoas não sabem que ele existe. Por baixo, hoje se publica no Brasil uns 150, 200 livros por dia. Então, se um escritor em 60 dias, para ser generoso, não conseguir um bom resultado de vendas, as livrarias já começam a tirá-lo das lojas. O João Ubaldo Ribeiro uma vez falou que a primeira coisa que um bom escritor precisa é saber reconhecer o fracasso, porque ele vai fracassar uma hora. Só tem de ter uma força de vontade tão grande que ele supere isso e consiga construir um público, uma trajetória, uma carreira, como em qualquer área. Por isso o grande conselho para os escritores hoje é planejar a sua carreira e a carreira do livro que quer publicar.
Como a Belas-Letras conseguiu encontrar seu nicho?
Pensamos o livro como uma plataforma. Cada livro tem de ter alguma coisa de diferente, de muito especial, um molho que vai encantar o leitor, e não estou falando só de texto, estou falando de forma também, de divulgação, da experiência do leitor em ver o livro. A gente trabalha muito com a ideia de seduzir com projetos inovadores. Por exemplo, no caso do livro Amor à Moda Antiga, do (Fabrício) Carpinejar, pensamos um projeto para encantar os leitores no Dia dos Namorados e convidamos ele para escrever 50 poemas na máquina de datilografar. E vendeu super bem. Tentamos ter uma mentalidade inovadora para o livro: o que mais vai mudar minha experiência na hora de ler? Procuramos apresentar o livro como um objeto de desejo, de encantamento. O Papai é Pop também foi um trabalho nosso a partir de entender tendências, e hoje ele não é um livro, é uma marca. Eu vejo nossos livros como marcas.
As feiras do livro ainda têm um papel hoje? E já pensando no próximo ano, a editora pretende voltar a participar em Caxias?
As feiras do livro nunca tiveram um papel tão importante quanto agora. Elas criam um ambiente de experiência para o leitor, porque aproximam as pessoas dos livros de uma forma orgânica, você percorre ruas que têm livros dos dois lados. As pessoas não vão lá porque querem comprar; elas vão para viver uma experiência com os livros, elas querem ter conteúdo, assistir a uma palestra, tomar um café e conversar com alguém sobre livros. É uma experiência de compartilhamento dos livros e da leitura, e por acaso elas compram quando estão lá. E isso para mim é o futuro.
Sobre a feira de Caxias, a nossa decisão de não participar neste ano não teve a ver com o local, mas com a atitude da prefeitura, que desrespeitou todo o mercado do livro, não houve diálogo. A partir do ano que vem, participamos, independente de onde (a feira) estiver.
Entrevista
"O desafio é se reinventar", diz editor da Belas-Letras
Para Gustavo Guertler, o livro precisa ser mais interessante do que outras opções de entretenimento
Maristela Scheuer Deves
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