A música de Taiguara saúda as marcas do corpo e do tempo. A tela mostra um Recife antigo, em p&b. Num corte não linear da trama, quando Sonia Braga se despe para o banho, o primeiro mito cai. Não há uma diva ali, mas uma mulher que tem no corpo os vestígios da vida. A personagem resiste no edifício que dá nome ao filme. Insiste em afirmar valores como gentileza e tolerância em tempos de barbárie e corrida imobiliária que lhe ameaçam.
O prédio onde vive solitária é o que lhe resta como ética e dignidade, suas bandeiras.Mas eis que a nova era ameaça o Aquarius. A especulação, os distanciamentos (e aproximações) geracionais, os embates quase eternos na ainda estamentada sociedade brasileira se impõem. Casa grande e senzala emergem como simulacro. Senhores de engenho e serviçais diluem-se entre gente mais branca, gente mais negra, gente meio amorenada.
Gente do bem e gente de outros lugares cruzam pela trama do pernambucano Kleber Mendonça Filho entre orgias, cultos e cupins nada metafóricos que corroem o Brasil contemporâneo. Aclamado em festivais mundo afora e polêmico desde que sua equipe protestou no Festival de Cannes dizendo que o Brasil sofria um golpe, mesmo que não tenha sido indicado a concorrer vaga à indicação ao Oscar de Filme Estrangeiro, Aquarius faz mais do que devolver Sonia Braga à condição de estrela do cinema brasileiro.
A produção também esgarça o mito da cordialidade tupiniquim e segue em mais provocações: alguns jovens são velhos – ou vintage?! – demais para seu tempo, alguns velhos são de um viço arrebatador.Em meio a um discurso sobre memória, vitalidade, corrupção e resistência, Aquarius investiga um Brasil ao seu redor, enredado em suas mazelas.
Disposto em três partes, o filme fala dos cabelos, dos amores e do câncer de Clara, a brava protagonista. E espraia as marcas de uma nação, as intolerâncias que a desestabilizam. “Hoje - canta Taiguara de novo, fechando esta belíssima fábula sobre o Brasil - homens sem medo aportam no futuro”.
Entrevista - Sonia Braga
Por que fazer Aquarius ?
– Comecei a ler o roteiro e pensei que o Kleber me conhecesse profundamente. As coisas foram se encaixando na minha vida desde os anos 1980. O Kleber foi me dando um texto para as coisas que eu não sabia como dizer. Eu até sabia o que dizer, mas não como. Ele organizou meu pensamento. Clara sou eu. Este é meu sentimento em relação ao país que eu amo, que tenho muito cuidado, que é o Brasil.
Quem é a Sonia que reaparece nos cinemas?
– Se eu tivesse um sonho agora, gostaria de que as pessoas, seja quem for, de onde for, que se tiverem a possibilidade de pagar um ingresso de cinema, vá ver Aquarius. Lembrem que eu sou a mesma pessoa em que um dia elas acreditaram. A mesma! Eu tenho a mesma verdade, os mesmos sonhos, o mesmo crédito. Eu sou essa pessoa que um dia elas elegeram e gostaram de mim. Se deem o direito e liberdade de ver o Aquarius. Esse é o único canal que eu tenho para me reconectar com elas.
Como foram as filmagens?
– Quando cheguei ao set, percebi que era uma equipe profundamente engajada, fazendo um trabalho artístico engajado e atento a todas as questões sociais que existem hoje. Trabalho em cinema há 50 anos, mas nunca vi isso acontecer.