Raridade nas telas brasileiras, o cinema da Estônia está em cartaz na Capital representado por uma joia artística: Na ventania (2014), longa-metragem de estreia do diretor e roteirista Martti Helde, é um pungente réquiem, que une requinte formal, contundência dramática e denúncia histórica ao recuperar as memórias de vítimas dos expurgos stalinistas. Vencedor dos prêmios de melhor diretor estreante do 5º Festival Internacional de Cinema de Pequim e melhor filme pelo público do 38º Festival de Cinema de Gotemburgo, entre outros, Na ventania é narrado pelos textos das cartas escritas para o marido por uma personagem chamada Erna Tamm – uma das 40 mil pessoas deportadas da Estônia, da Letônia e da Lituânia pelos soviéticos para a Sibéria em 1941, logo depois da ocupação dos três Estados bálticos pela URSS, a fim de eliminar a resistência ao regime de Moscou e promover uma espécie de limpeza étnica na região recém-anexada.
Na ventania começa mostrando a idílica vida no campo do casal Erna (Laura Peterson) e Heldur (Tarmo Son) e sua pequena filha Eliide (Mirt Preegel). Desde as primeiras imagens, a bela fotografia em preto e branco assinada por Erik Põllumaa já impressiona. Porém, é só quando os soldados chegam na propriedade para buscar Heldur, integrante da Liga de Defesa da Estônia, e sua família que o filme passa a exibir seu dispositivo narrativo sofisticado e virtuosístico: a história é toda contada pela voz em off de Erna, cuja leitura de cartas é ilustrada por tableaux vivants – composições e representações em que os atores permanecem estáticos, como estátuas vivas, em um determinado momento suspenso. O recurso é impactante: a câmera passeia em longos planos-sequência por entre cenários e personagens – às vezes, grandes grupos de pessoas – como em uma visita a um imenso museu de cera, em que a imobilidade das expressões faciais congeladas e dos gestos parados no ar das figuras só encontra contraponto em fenômenos naturais como a luz do sol cambiante, a neve que cai ou o vento que sopra as roupas.
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Separada do marido na partida da longa e excruciante viagem de trem até as remotas e gélidas paragens siberianas, Erna relata em suas missivas a dura vida que ela e Eliide levam no trabalho forçado em um kolkohz – fazenda coletiva soviética – em troca de uma ração miserável de pão. Apesar das injustiças e das penúrias descritas, as cartas da protagonista – inspiradas nas correspondências de parentes deportados do realizador do filme e em biografias de estonianos que passaram por essa experiência – também exprimem uma melancólica esperança de um reencontro familiar e do retorno ao lar.
O cineasta explicou que a ideia de filmar Na ventania como se fosse uma série de pinturas tridimensionais veio depois de ler o seguinte depoimento de época: "Eu sinto como se o tempo tivesse parado aqui na Sibéria. Que meu corpo está na Sibéria, mas minha alma ainda está na minha terra natal". Com um rigor que evoca tanto os filmes do russo Andrei Tarkovski quanto os do húngaro Béla Tarr, o jovem diretor estoniano de 29 anos construiu meticulosamente 13 quadros sem qualquer diálogo, transcendendo o mero maneirismo estetizante para comover como se fosse uma coleção de cartões postais que fixam no olhar e na lembrança do espectador a tragédia de um povo em forma de poesia visual.
Na ventania
De Martti Helde
Drama, Estônia, 2014, 87min.
Em cartaz na Sala Paulo Amorim da Casa de Cultura Mario Quintana
Cotação: 5/5 – Excelente