O Brasil não participou do chamado "jogo do século" do século passado. O "jogo do século" deste século ainda não pintou – mas ainda há 8 décadas de Copa pela frente, pra que se apressar? Jogavam-se as semifinais da Copa de 70 no México, mesma fase que se joga agora na Copa do Catar. Com algumas diferenças importantes. Agora, é uma semifinal na terça-feira, outra na quarta. Daquela vez, eram os dois jogos ao mesmo tempo, como ocorre na última rodada da fase de grupos ou nos jogos da última rodada do Campeonato Brasileiro, que são simultâneos.
Enquanto a Itália enfrentava a Alemanha no Estádio Azteca, na Cidade do México, o Brasil cruzava com o Uruguai no Estádio El Jalisco, em Guadalajara. E a diferença central: não bastava apertar algumas teclas no controle remoto para pular de um jogo para outro. A tevê transmitia um único jogo, e já era de levantar as mãos para os céus poder assistir ao vivo à nervosa partida do Brasil contra o Uruguai. O fantasma de 1950, a vitória dos uruguaios no Maracanã no final da Copa daquele ano, ainda rondava no ar. Afinal, fazia apenas 20 anos daquela derrota marcante. Os vizinhos saíram na frente e o Brasil só foi empatar aos 45 do primeiro tempo, virando jogo já na reta final do segundo tempo, classificando-se assim para a final da Copa.
O "jogo do século" foi o outro. Não bastasse a Copa do México ser pontilhada de genialidades, com uma coleção de protagonistas de primeiro nível, aquela Copa tinha alguns componentes impressionantes. Por exemplo, o artilheiro da competição foi o alemão Gerd Müller, com nada menos do que 10 gols, em uma Copa que tinha um jogo a menos do que as edições atuais. Um feito. Os artilheiros das últimas Copas têm chegado a, no máximo, 6 gols. Gerd Müller também marcaria o gol que deu o título à Alemanha na Copa seguinte, contra a Holanda. E Müller deixou o seu naquele "jogo do século", mas não adiantou, porque a Alemanha perdeu. A Itália fez 1 a 0 no início do jogo e a Alemanha empatou no último lance da partida, levando a disputa para a prorrogação. Começou por aí. E no tempo extra, tudo foi alucinante. Ainda no primeiro tempo, a Alemanha virou para 2 a 1 e a Itália revirou para 3 a 2. No segundo tempo, a Alemanha voltou a empatar, gol de Müller, mas a Itália fez o quarto logo depois. Cinco gols na prorrogação, em uma sequência alucinante. O principal jogador da Alemanha, Franz Beckenbauer, jogou com o ombro enfaixado, que havia saído do lugar, em boa parte da partida. Foi protagonista e heroico.
O detalhe, em tudo diferente do que ocorre hoje, é que não havia chance de assistir a esse "jogo do século", pois a partida transmitida para o Brasil era, logicamente, Brasil x Uruguai. Então, tudo transcorreu à margem do tenso jogo da Seleção, que também foi de tirar o fôlego. Mal tínhamos tempo para respirar na frente daquela tevê em preto e branco na sala de casa. O nervosismo era enorme. Mas já estávamos em festa enquanto rolava a prorrogação entre Itália e Alemanha, porque o jogo do Brasil terminara no tempo normal. Assim, a riqueza de detalhes e a exibição dos gols daquele 4 a 3 vertiginoso, com o auxílio do famoso "videotape", só foi possível conferir com calma no outro dia. E o tamanho do feito de Itália e Alemanha foi se tornando cada vez mais grandioso com o passar do tempo. Até se tornar reconhecido, merecidamente, como o "jogo do século" do século passado.
Foi uma noite alucinante e inesquecível. Que jornada memorável! Saímos em passeata pela cidade após o 3 a 1 sobre o Uruguai. Ao final, Brasil e Itália estavam na final. O resto é história.
* Durante toda a Copa do Mundo, o colunista Ciro Fabres publicará em GZH Histórias de Copa, uma coletânea de crônicas e histórias embaladas em torno das Copas do Mundo, desde a primeira delas acompanhada pelo colunista, a de 1970, no México. Com a Copa do Qatar, são 14 Copas.