Há uma canção apropriada para o calendário e para nossos dias, mesmo que seja de outro tempo. Foi soterrada pelos anos. Hoje não toca mais em rádio, tevê. Nos meios digitais, só quem lembra dela irá em busca de ouvi-la. Sol de Primavera é o nome dela, composição de Beto Guedes. “Quando entrar setembro...” é seu primeiro e poderoso verso. Ainda que sua mensagem possa soar um tanto esquecida, muito pouco exercitada e até incompreensível para muitos – pois a linguagem de nossos dias é outra, menos poética e mais direta, e há menos generosidade no ar –, o calendário nos salva para resgatá-la, empoeirada. Setembro entrou. E o que acontece “quando entrar setembro...”? Pois bem.
“Quando entrar setembro e a boa nova andar nos campos...” Poesia numa hora dessas?, diria Luis Fernando Verissimo. Boa nova é uma expressão surrada, um tanto antiga e démodé na forma, mas, definitivamente, não é uma boa nova o que se vê, o que anda por aí nesses nossos campos verdejantes. Ao contrário, o que circula por aí é a cogitação de um regresso, é o que se diz, é o que tentam anunciar.
Quando entrar setembro, o calendário nos coloca: vem logo o Sete de Setembro, data este ano envolta em muita fumaça. Pode ser arroubo, aventura, inaptidão ou descaso democrático, mas a mera cogitação de um regresso, ou como permitimos que essa cogitação prosperasse e tomasse forma, e tenha chegado até onde chegou, isso por si só é terrível e não condiz como o setembro poético, simbólico, o setembro da boa nova, do sol de primavera.
“Já choramos muito / Muitos se perderam no caminho”, lembra a canção, que, como foi dito no início, é apropriada para nossos dias, e nossos dias correm em tempos pandêmicos, não é bom esquecer. Perderam-se aos milhares na linguagem literal, e “muitos se perderam no caminho” também no sentido figurado. Ficaram pelo caminho. Mas setembro, na linguagem poética do compositor, também é uma convocatória: “Mesmo assim não custa inventar uma nova canção que venha nos trazer sol de primavera”, isto é, capaz de afastar nuvens carregadas. “Quero ver crescer nossa voz no que falta sonhar.” É uma canção de outro tempo, que fala em sonhos, vejam só que anomalia, que soa fora de sintonia nos dias de agora.
“A lição sabemos de cor.” Isto é, nós já a conhecemos. “Só nos resta aprender” com os ensinamentos e a história. Canção apropriada para o calendário e para nossos dias, como se vê. Poesia numa hora dessas? A realidade é incerta. A poesia sempre falou alto em horas assim.