Algo que reacende a alma, quando ela se torna subjugada por nossos dias apressados, adquirindo a perigosa condição de mera coadjuvante da existência, é ser surpreendido por um destampar do baú da memória quando menos esperamos. São situações cada dia mais raras, com a capacidade de remexer em lembranças que, irresponsavelmente, deixamos ficar soterradas. É uma bênção, luzeiros da alma, diria algum poeta regional.
Foi o que aconteceu nesta terça, no programa Gaúcha Hoje, enquanto aguardava para meu comentário de todas as manhãs. Na trilha sonora do programa, trilha campeira das terças-feiras, alguém escolheu Gaudêncio Sete Luas, e os acordes me fizeram ver o quanto relapso e descuidado tenho sido comigo mesmo. Pois não é que eu nem lembrava mais de Gaudêncio Sete Luas, obra-prima de Luiz Coronel e Marco Aurélio Vasconcellos? Pecado mortal. “A lua é um tiro ao alvo / E as estrelas bala e bala.” Outra figuração para a triste literalidade de nossos dias. “Marquei a paleta da noite / Com o sol que é ferro em brasa / E o dia veio mugindo / Pra se banhar n’água rasa.” Segunda Califórnia da Canção, 1972, aquele festival pioneiro que marcou época em Uruguaiana, mas que - sinal dos tempos - não se realizou em 2018 pela primeira vez em 40 anos.
A poesia e o cancioneiro regionais são tesouro. A relação com a lida e com o tempo é a essência desse universo regional. Perdemos o hábito, perdemos o jeito. Esquecemos do que realmente importa, daquilo que resgata nossa vivência, nossa trajetória, e alimenta a alma. O março luminoso – estamos falando da época do ano, não de história! – terminou, vem abril, e o outono é outra figura fortíssima de meu universo pessoal. A relação do outono com o passar do tempo é poderosa, magnificamente traduzida por outro clássico regional, Veterano, de Antonio Augusto, Ewerton Ferreira e Leopoldo Rassier, Califórnia de 1980: “Está findando meu tempo / A tarde encerra mais cedo / Meu mundo ficou pequeno (...) / Nas manhãs de primavera / Sou menino de alma leve / Voando sobre o pelego (...) / Quando chegar meu inverno / Que me vem branqueando o cerro”. O inverno um dia chega.
Negligenciamos com a poesia. Retiramos dela o tempo, o espaço, a função vital. Não à toa, os dias perderam em graça. Outro personagem do repertório regional é Pedro Guará, também de 1972: “Mateava na espera do tempo chegar.” Tradução mais profunda do ato de todos os dias, cuia na mão. Enquanto vai “branqueando o cerro”, nos deixemos ao alcance das lembranças preciosas. E de novas possibilidades.