Uma das armadilhas da crônica de costumes é virar as costas para a realidade. O mundo pega fogo e você saca do bolso uma amenidade. Lamento, mas, nesta hora em que nos encontramos, particularmente nós, brasileiros, não há como evitar a trilha mais dura, certamente mais inoportuna, chata e incômoda. A mosca de Raul, aquela que pousa na sopa alheia, parece mais produtiva, necessária, até obrigatória.
A passagem de bastão de 2016 para 2017 foi catastrófica. Seria um indicativo para 2017? Não é improvável. Que Deus nos proteja. A passagem de bastão começou no Natal, com o espancamento até a morte de um ambulante que tentou defender um morador de rua homossexual em uma estação de metrô na capital paulista. Passou pela chacina de 12 pessoas em Campinas na virada do ano e enveredou pela matança desenfreada nos presídios de Manaus e Roraima, com decapitações e esquartejamentos. O autor da chacina de Campinas se referia à ex-mulher como "vadia". E à Lei Maria da Penha como "Vadia da Penha". Uma escalada, pelo menos sob o ponto de vista numérico, mas não da barbárie, que este componente se fez presente em todos os acontecimentos. Essa tem sido nossa sucessão de acontecimentos.
Leia também
Ciro Fabres: momento deprimente
Natalia Borges Polesso: não quero ter medo
Marcos Kirst: cravados nas jugulares
Essa passagem de bastão, com tal nível de barbarismo, não se dá por acaso. Encontrou campo fértil entre nós. E acolhida. Há tempos encontra campo fértil, com as concessões permitidas ao primitivismo que circula desembaraçado, que se sente cada vez mais à vontade para pregar a vingança e a intolerância. Faltam reações como a de Meryl Streep, só que lá. Meryl Streep lembrou a Donald Trump sobre a contribuição universal para a arte e a cultura. Por aqui, Regina Duarte vai ajudar Jorge Doria a varrer a Paulista. É a reação mais visível. Por aqui, travestis e defensores de travestis, mulheres e presidiários são habitualmente desprezados e agredidos. Por aqui, a juventude tem um secretário nacional que prega uma chacina por semana. A que ponto chegamos: a juventude, outrora dita rebelde... Aliás, o tal secretário só foi abatido de cargo para salvar as aparências. Tanto que um deputado federal, um certo Major Olímpio, incita o pessoal do Complexo de Bangu a virar o placar das mortes, deixando para trás os presídios do Norte.
É preciso reagir como Meryl Streep. Não deixar passar as barbaridades sem constangê-las, retirar espaço às barbaridades. Perdoem a chatice no início do ano. Tentarei voltar mais leve das férias, que começam amanhã. Volta e meia, tratar de temas mais amenos. Mas francamente: barbaridades, não dá para deixar passar. Que Deus nos proteja em 2017.
Opinião
Ciro Fabres: passagem de bastão
É preciso reagir como Meryl Streep. Não deixar passar as barbaridades, retirar espaço delas
Ciro Fabres
Enviar emailGZH faz parte do The Trust Project
- Mais sobre: