É engraçada a população. Ou boa parte dela. Elegeu os políticos os grandes vilões da história. Roberto Justus, assanhado pelo fenômeno Donald Trump, diagnosticou sem embaraço: “O Brasil precisa sair das mãos dos políticos.” É tudo que grande parte da população quer ouvir. Como se essa população, nós todos, a sociedade, pelo voto ou pela omissão, não tivesse nada a ver com isso. Os políticos desceram de Marte, transportados em alguma nave interplanetária, e eu perdi o espetáculo.
Leia mais
Frei Jaime Bettega: a felicidade sempre volta
Adriana Antunes: do tempo em que havia poços
Marcos Kirst: um nocaute à barbárie
Agora, é essa ladainha contra os políticos, que de fato, em larga escala, não ajudam em nada. Mas não são só eles, eis a questão. O juiz Sergio Moro e os fiéis escudeiros do Ministério Público percebem vencimentos mensais indecorosos. Furam o teto constitucional, e isso não está previsto em lei. Desrespeitam a lei, portanto. Falamos muito em corrupção, e quase nada em sonegação. As fraudes, bem além e longe do Congresso, estão por todo lado, sendo a do leite a mais inacreditável delas. Os políticos, esses vilões, ora vejam, eles são só a consequência. Essa é uma lição antiga, mas que boa parte da população faz questão de não ver. É um pedaço de pós-verdade.Instigado pela pós-verdade, essa palavra eleita para descrever nosso tempo, tentei traçar uma correspondência para ela aqui nos trópicos. Pós-verdade, segundo a definição mais corrente, é um contexto em que os fatos objetivos, aquilo que acontece de verdade, tem menos influência do que aquilo que se diz deles. É a disputa pela narrativa. Pós-verdade, no literal, é depois da verdade, e depois da verdade vem isso, esse desapego aos fatos. Traduz bem o que tem acontecido entre nós. Mas, por aqui, parece haver mais, como tão bem evidencia esse acordão tenebroso no Supremo em torno do senador Renan Calheiros. Por aqui, somam-se a desfaçatez, o cinismo e uma capacidade de subestimar e desprezar a inteligência e a cidadania. Fui procurar no dicionário. Desfaçatez é falta de vergonha. Cinismo é quando não basta a falta de vergonha, mas ainda se tira onda dela. Bem típico.Quando era criança, escutava compenetrado os adultos, e havia uma designação que proferiam habitualmente que me soava como grave sentença: “Fulano é um sem-vergonha.” Aquilo calava fundo. Ficava pensando comigo, ensimesmado, criança ainda: “Boa gente é que não é.” Por aqui, não só os políticos são os vilões da história. E talvez a expressão mais ampla que se aplique a nós, a partir do que transparece visível da realidade, é aquele conceito antigo, que escutava dos adultos: falta de vergonha, mesmo. Simples assim. De engraçado, não temos nada.
Opinião
Ciro Fabres: falta de vergonha
Os políticos desceram de Marte em alguma nave, e eu perdi o espetáculo
Ciro Fabres
Enviar emailGZH faz parte do The Trust Project
- Mais sobre: