Não tinha telefone celular. É a primeira recordação, que salta aos olhos. E isso era muito bom, embora certamente houvesse outras formas sutis de aprisionamento. Apesar das infinitas possibilidades que a tecnologia escancara hoje em dia, a imaginação corria mais solta naquela época, naquele tempo em que tinha 14 anos, em que não havia redes sociais, mas outras fontes bem mais localizadas e artesanais de conhecimento e diversão. As redes sociais eram reais, na cidade pequena, na escola, na rua, com os vizinhos, com os colegas, em família. A sensação forte é de que era melhor assim.
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Insegurança quase não havia. Era um outro mundo, mais limitado, ou não, a depender do ponto de vista. Mas hoje se vê, não tinha preço. Era um tempo em que ia ao colégio e voltava a pé para casa embalado pela mais pura despreocupação infanto-juvenil. Tempo das primeiras letras, de Monteiro Lobato. Anos 70, tempo da tevê em cores que recém engatinhava, com a oferta miserável, mas inestimável, de um ou dois canais, no máximo. Grandes toca-discos e caixas de som reproduziam a música dos vinis com seus arranhões. Depois veio o 3 em 1. E a fita cassete era o smartphone da época, mas só tocava música, 15 ou 20 no máximo.
Havia uma vida pela frente, e sequer os sonhos estavam esboçados ou rabiscados, o que talvez tenha sido uma imprevidência, uma incapacidade inquietante de sondar e especular horizontes. Seja como for, assim foi o tempo de meus 14 anos. Inesquecível. Depois, vieram outros 14 anos, e mais outros, que foram empilhando experiências, informações e sentimentos em cima dos primeiros, a nos trazer pela mão até nossos dias estressados, apressados e inseguros.
Mas houve os primeiros 14 anos. E foi só o que houve, nada mais, nas vidas de pelo menos quatro adolescentes assassinados justo aos 14, só este ano, quando também foram mortos um menino de 12, outros adolescentes de 15, 16, 17, nove ao todo... Ficaram pelo caminho. Não há mais vida pela frente. Por algum percurso torto ou atalho que se revelou fatal, essas vidas chegaram a um terreno pantanoso e traiçoeiro que as tragou. Ficou o vazio do que poderia ter sido. Não há mais nada para contar, só lembranças abreviadas. Agora faltam a alegria, a despreocupação, as brincadeiras, a diversão, os amigos, os primeiros amores e sonhos que havia em torno delas. Os horizontes se apagaram. Assim são as consequências de um assassinato aos 14 anos. E foram quatro só este ano.
Para a cidade, tanto faz. A cidade segue seu rumo, indiferente.
Opinião
Ciro Fabres: meus 14 anos
Era um mundo mais limitado, ou não, a depender do ponto de vista
Ciro Fabres
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