Enquanto olho os livros em busca de um que me faça companhia, encontro as dedicatórias de amor. Há uma que fala do desejo de viver uma vida há dois com os pezinhos e os sovacos limpos. Ah, o romantismo tem mesmo sua própria linguagem. Tenho uma velha mania de pensar no futuro, como se o futuro já não fosse agora, mas enfim, gosto de pensar que num futuro bem distante, quando for velha, irei encontrar coisas que escrevi nas dobras dos livros. Pequenos recados e registros do cotidiano, como a chuva fina que cai e me lembra de uma viagem feita em silêncio ou do cheiro delicioso que vem da cozinha e invade a casa. Sempre atravesso uma espécie de ponte quando me reencontro com escritos antigos. Às vezes parece que uma noite desce, escurecendo o quarto, matizando a memória. Há coisas que escrevemos mas que não deveriam ter sido escritas. Funcionam como as pedras mais escuras do rio, que de quando em quando, seja por conta da chuva ou do sol, reaparecem ao olhar, denunciando que a profundidade existe. Respeito muito pedras, há nelas histórias do mundo. Coisas de mim, coisas de você. Então, por mais que se pise nesta ponte que liga o aqui e agora ao que foi, mas não foi, na tentativa de se chegar à outra margem, nunca a atinjo, porque o tempo, invariavelmente, rasga a vida em dois: o antes e o nunca.
Opinião
Adriana Antunes: dedicatória
Gosto de pensar num futuro bem distante, quando for velha, irei encontrar coisas que escrevi
Adriana Antunes
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