
Manifestações semanais de aposentados argentinos contra o governo de Javier Milei e por melhores condições de renda ganharam o apoio das temidas "barras bravas" na quarta-feira (12). A presença das torcidas organizadas do futebol nas ruas de Buenos Aires, contudo, levou um grande contingente policial às ruas — combinação que provocou violentos confrontos com mais de 40 feridos, sendo um deles em estado crítico.
Na quinta (13), o governo falou que seguirá reprimindo quem fizer protestos como o realizado pelas torcidas, classificados como "uma espécie de golpe de Estado" pela Casa Rosada.
Nesta reportagem, Zero Hora explica o porquê da insatisfação dos aposentados, os personagens de mais uma crise no país vizinho e as possíveis consequências da disputa, meses antes das eleições legislativas, que podem ampliar ou reduzir a força da "motosserra" de Milei.
Aposentadorias
A pensão mínima no país é de 279 mil pesos argentinos, cerca de R$ 1,5 mil, com um bônus de reforço de 70 mil pesos (R$ 380). Para não ficar abaixo da linha de pobreza na Argentina, um adulto precisa de pelo menos 334 mil pesos por mês, o equivalente a R$ 1,6 mil, de acordo com o Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec).
A consultoria Abeceb afirma que, atualmente, os aposentados recebem 22,9% a menos do que em janeiro de 2022 e 29,2% a menos na comparação com janeiro de 2017, informou o Estadão.
Além dos valores com pouca margem de ampliação, um dos pontos do ajuste fiscal do presidente Javier Milei, do partido ultraliberal La Libertad Avanza, foi a redução de subsídios (como os aplicados em tarifas de energia e transporte), benefícios sociais e investimentos que elevavam os gastos públicos do país.
Em um cenário de inflação alta, a mudança de postura do governo passou a pressionar o bolso de quem dependia do amparo estatal. O primeiro ano de Milei na Casa Rosada terminou com a inflação em 117,8% (apesar de elevado, o número é 94 pontos inferior ao índice registrado em 2023).
Em meio a isso, o governo alterou a fórmula de cálculo das aposentadorias. No entanto, o mecanismo não seguiu o ritmo da evolução dos preços, explica a Zero Hora o economista Hernán Neyra, professor da Universidade de Buenos Aires (UBA).
— O que fizeram foi atualizar a fórmula depois de um trimestre em que ela não foi corrigida, e foi um dos trimestres com maior queda de valor devido à alta inflação. As aposentadorias perderam, portanto, grande parte do seu poder de compra — analisa.
Outro fator é que políticas adotadas pelo mandatário retiraram travas sobre preços de produtos e serviços do dia a dia da população. Para os aposentados, por exemplo, os reajustes mensais de remédios e planos de saúde causaram fortes impactos nas contas.
— Posteriormente, os valores foram atualizados com o novo índice, mas a aposentadoria já estava baixa, levando a uma diminuição no uso de medicamentos prescritos, por exemplo, devido à incapacidade de compra pelos idosos — complementa Neyra.

Em 2024, a Argentina alcançou seu primeiro superávit fiscal desde 2010. O resultado foi comemorado pelo governo Milei.
O resultado foi obtido graças a um corte de 31% na execução orçamentária da administração pública, aponta um estudo do Centro de Economia Política Argentina (Cepa). Saúde, assistência social e ciência foram alguns dos setores mais afetados pelas medidas do governo.
— O superávit financeiro foi sustentado por ajustes brutais nos salários e na renda indireta — afirma Neyra, mencionando os subsídios e benefícios sociais como exemplos de cortes.
Os personagens
Jubilados
Como forma de protesto, um grupo de "jubilados" (como são chamados os aposentados na Argentina) começou a se reunir nas imediações do Congresso, em Buenos Aires, todas as quartas-feiras. As manifestações foram ganhando corpo e, vez ou outra, terminavam em confronto com a polícia.
Um caso em especial levou à participação de um novo grupo na disputa. Um dos idosos, vestindo a camiseta do clube de futebol Chacaritas, se envolveu em um incidente com policiais, sendo agredido na rua. Em solidariedade, as torcidas organizadas declararam apoio aos jubilados.
Diante da insatisfação acumulada a meses, os argentinos tomaram a praça em frente ao Congresso, em Buenos Aires, na quarta-feira.
Ainda na quarta, panelaços se multiplicaram por diversos bairros de Buenos Aires. Durante noite, moradores saíram em caminhada em um protesto pacífico contra o governo, noticiou o jornal Perfil.
Barras bravas
Conhecidas como "barras bravas", as torcidas dos times de futebol têm forte ligação com círculos sindicais e políticos. O discurso adotado pelas "hinchadas" foi o de defesa dos idosos diante dos ajustes do governo, antes prometidos para atingir o que Milei chamava de "casta".
O envolvimento das barras em atos violentos, dentro e fora dos estádios, levantou alerta entre as autoridades argentinas, que já se preparavam para eventuais conflitos na manifestação de quarta.
Ao longo do dia, lixeiras e carros foram incendiados. Pedras soltas nas calçadas viraram munição, enquanto as forças de segurança agiram com spray de pimenta, gás de efeito moral e balas de borracha. Ao todo, 124 pessoas foram detidas. Segundo o jornal Clarín, 114 delas foram soltas após uma decisão judicial, que também alimentou polêmica no polarizado cenário político local.
Pablo Grillo
Entre os feridos, está o fotojornalista Pablo Grillo, 35 anos, atingido por um projétil de gás lacrimogêneo disparado pela polícia. O profissional está em estado crítico, após sofrer fratura no crânio e perda de massa cerebral.
Grillo estava agachado, tirando fotos, quando foi atingido. O fotografo caiu para trás e foi socorrido por colegas e manifestantes (veja no vídeo abaixo).
Em entrevista ao canal de TV C5N, o pai do fotojornalista, Fabián Grillo, disse que o filho era conhecido por cobrir manifestações.
— Ele era um militante, mas também era um fotógrafo e estava fazendo fotografias de forma independente. Sempre documeta quando há este tipo de atividades — disse.
Amigos foram ao hospital onde o homem está internado para doar sangue.

Javier Milei
Irredutível, até aqui, nas medidas de ajuste fiscal, Milei não recuou no embate com os aposentados e torcedores. O presidente replicou dezenas de publicações em seu perfil no X (antigo Twitter), com críticas aos manifestantes e defesa das ações policiais.
Após o ato de quarta, a Casa Rosada chegou a dizer que havia sofrido uma "espécie de golpe de estado". Guillermo Francos, chefe do gabinete de ministros (equivalente à Casa Civil, no Brasil), culpou o kirchnerismo pelo envolvimento das torcidas organizadas nas manifestações.
Além das barras bravas, participaram dos atos partidos de esquerda e o movimento La Cámpora, ligado ao deputado Máximo Kirchner, filho dos ex-presidentes Néstor e Cristina Kirchner.
Rompida com Milei, a vice-presidente Victoria Villarruel rebateu o posicionamento do governo. Em fala a jornalistas, conforme o Clarín, ela discordou da hipótese de "golpe de estado" levantada por Francos.
— Creio que é o exercício da democracia — disse Victoria.

Patricia Bullrich
Terceira colocada nas eleições presidenciais de 2023, Patricia Bullrich apoiou Milei no segundo turno e virou ministra da Segurança do presidente. Filiada ao partido do ex-presidente Mauricio Macri, do qual também foi ministra, ela é conhecida por ser "linha dura" contra manifestações.
Antes dos atos, Bullrich ameaçou de prisão os torcedores envolvidos e prometeu sanções às barras identificadas. Depois dos distúrbios, a ministra se posicionou:
— Na Argentina, manda a lei, não os barras nem a esquerda.
Juíza Karina Andrade
Na quinta (13), a juíza Karina Andrade ordenou a soltura de 114 dos manifestantes detidos. Na decisão, conforme o Clarín, a magistrada afirmou que as prisões "afetam direitos constitucionais fundamentais, como o direito à manifestação e à liberdade de expressão".
Nenhum dos liberados foi detido por porte de armas de fogo, lesões ou incêndios, destacou a decisão judicial.
A Casa Rosada reagiu e criticou a juíza. O porta-voz de Milei, Manuel Adorni, disse que "a Justiça da porta giratória (em que as pessoas entram e saem com facilidade) é diretamente responsável pela insegurança na Argentina".
Futuro
Os protestos acontecem pouco mais de seis meses antes das eleições legislativas na Argentina. Em outubro, a população vai às urnas para renovar 127 das 257 cadeiras na Câmara de Deputados e 24 das 72 vagas do Senado.
O partido La Libertad Avanza, do presidente Milei, lidera as pesquisas com números que vão de 30% a 40%. O governo, que tem 39 deputados e apenas seis senadores, almeja ampliar sua representação. O kirchnerismo, por sua vez, aparece com índices que variam de 20% a 30%.
Apesar de relativo apoio popular no primeiro ano de governo, Milei começou 2025 enfrentando crises e polêmicas. Em fevereiro, após o ultraliberal fazer declarações contra o feminismo e a comunidade LGBT+, uma marcha pela diversidade tomou as ruas de Buenos Aires. Semanas depois, o presidente promoveu uma criptomoeda que causou prejuízos milionários a investidores argentinos.
Repercussão imediata dos confrontos de quarta, uma greve geral foi convocada pela poderosa central sindical Confederação Geral do Trabalho (CGT). Conforme o jornal La Nación, a mobilização deve ser realizada em abril.