Coordenador do Núcleo Brasileiro de Estratégia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Paulo Fagundes Visentini é uma das maiores referências em estudo e pesquisa no âmbito das Relações Internacionais em todo o Brasil. Na instituição, inclusive, o professor foi um dos idealizadores da criação do curso de graduação na área, assim como do programa de pós-graduação em estudos estratégicos internacionais.
Graduado em História, Visentini, 69 anos, concluiu ainda mestrado em Ciências Políticas e doutorado em História Econômica, além de inúmeras outras qualificações posteriores. Começou sua carreira na docência em 1979, também na UFRGS, e atualmente segue como professor de diferentes programas de pós-graduação na universidade.
Nesta entrevista exclusiva, o professor Visentini comenta diversos temas no âmbito das Relações Internacionais à luz do retorno de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, incluindo o impacto para o Brasil.
Confira a entrevista:
Como você observa a volta de Donald Trump ao poder nos Estados Unidos?
Donald Trump tem uma personalidade própria. Ele não é um político tradicional, se difere muito nesse aspecto, e, aliás, esse é um dos fatores que mais conquistou o eleitor norte-americano. Mas ele é, essencialmente, um empresário, e sua lógica de atuação, mesmo na política, é essa. Ele é daqueles empresários que tentam se impor, fazer ameaças, e isso já conseguimos observar novamente logo no seu discurso de posse, com inúmeros recados que ele mandou. Sua volta à presidência dos Estados Unidos agora vem nesse contexto ainda de crise da globalização.
A globalização está em crise, o neoliberalismo está em crise, esse mundo que foi projetado nessa fase de globalização está um pouco sem rumo, e Trump representa uma reação a isso, representa pessoas que não se sentiram incluídas, por alguma razão, nesse mundo mais globalizado. Muitas pessoas estão frustradas, cansadas dos discursos mais corriqueiros da política, e ele conseguiu canalizar essa frustração se vendendo como alguém que vai contra esse sistema político tradicional, alguém anti-establishment.
Mas Trump não tem um projeto coerente e nem sustentável, por mais que agora, neste segundo mandato, ele chegue com a experiência de ter passado pela presidência já uma vez, o que pode fazer com que ele seja mais assertivo em suas ações.
Falando nessas ameaças que você comentou, como analisa as falas de Trump em relação ao Canal do Panamá, ao Canadá e à Groenlândia, por exemplo?
Donald Trump tem essa lógica de empresário, e o que tem por trás dessas falas é que ele quer efetivamente reforçar e consolidar o espaço econômico dos Estados Unidos. Quando ele fala da Groenlândia e do Canadá, está mirando maior acesso ao Ártico, uma região que está cada vez mais disputada pelas grandes potências do planeta. E quando ele fala do Canal do Panamá, também quer que os Estados Unidos tenham mais vantagens econômicas, principalmente porque a China tem se feito cada vez mais presente na região, e ele cita expressamente a China no discurso de posse.
A China fez um grande avanço na América Latina nos últimos anos, tem feito investimentos significativos, aumentando sua influência, e a América Latina, historicamente, é uma região de maior influência dos Estados Unidos. Trump quer fazer pressão para que os Estados Unidos voltem a ser mais favorecidos em lugar da China. E ele faz isso da maneira como está acostumado, com ameaças.
Situações como esse imbróglio recente com a Colômbia, um aliado histórico dos Estados Unidos na América Latina, não podem deixar uma porta aberta para a China aumentar ainda mais sua influência na região?
É verdade. O que temos que considerar também é que este governo da Colômbia é um governo mais crítico aos Estados Unidos, não é como os antigos governos conservadores, mais alinhados, vamos dizer assim. Mas esse imbróglio, sim, afeta a região, porque tem um efeito visual para os outros países, que estão vendo que, em qualquer crise, o presidente norte-americano vai tentar falar grosso, vai tentar se impor pela força.
Com essa questão de aumentar a taxação de produtos estrangeiros, não há dúvida nenhuma de que isso vai provocar a formação de outros circuitos de negociação, de investimentos, no comércio internacional. De certa forma, a China já se aproveita disso e pode crescer ainda mais nessas brechas deixadas por essas crises. Mas, pelo perfil do Trump, ele vai tentar colocar ainda mais pressão de alguma forma para tentar evitar que esses novos circuitos ganhem mais força e se consolidem.
Por mais que o Brasil mantenha historicamente uma política externa independente, o presidente Lula também não é um aliado de Donald Trump. Como você avalia o impacto da volta de Trump à presidência dos EUA para as relações exteriores com o Brasil e também para o cenário político interno brasileiro?
Nós temos aí uma situação bem difícil, porque a eleição do Lula foi, visivelmente, saudada e apoiada pelos democratas, porque o presidente Bolsonaro era próximo de Trump, e os Estados Unidos, com os democratas no poder, não queriam que essa agenda representada por Trump e Bolsonaro se estabelecesse e ganhasse mais força. Por outro lado, nesses dois primeiros anos do governo Lula, nós tivemos uma diplomacia brasileira oscilante, o que se viu, por exemplo, com algumas posições e declarações contraditórias de Lula em relação à guerra de Rússia e Ucrânia. Agora, o Brasil vai ter que voltar a ter uma política externa mais assertiva, há uma margem menor para oscilações por causa da pressão que os Estados Unidos vão fazer.
A eleição de Trump também mexe com os blocos internacionais em que o Brasil está inserido. Essa questão do Brics, sobre a possibilidade de ter uma moeda própria, é algo que Trump vai tentar evitar de qualquer maneira, e as possíveis medidas propostas para que isso não aconteça também podem influenciar diretamente o Brasil. A mesma coisa pode acontecer com o Mercosul, apesar do acordo firmado às pressas recentemente com a União Europeia, depois de Trump já eleito, o bloco sul-americano pode perder força, porque o presidente argentino é muito mais alinhado ao presidente norte-americano.
Internamente, a eleição de Trump também dificulta um pouco mais para o governo brasileiro. O Brasil já tem um congresso majoritariamente oposto ao governo, que tem muitas dificuldades para aprovar suas principais medidas. Agora, o campo mais conservador está super entusiasmado com esse retorno do Trump, pensando que um governo conservador pode também retornar ao Brasil nas próximas eleições.
Você mencionou também o interesse dos Estados Unidos pelo Ártico. Por que as principais nações do mundo têm se voltado cada vez mais para a região?
O Ártico, realmente, é uma região que, nas últimas décadas, principalmente nos últimos anos, tem despertado cada vez mais o interesse das principais potências globais. É uma região com muitas riquezas, muitos recursos naturais, gás, minério. Com o aumento do derretimento do gelo marinho no Ártico, novas rotas de navegação comercial têm se criado por ali, o que também gera grande interesse. Hoje, os Estados Unidos só têm acesso a essa região pelo Alasca, por isso que Trump tem falado tanto no Canadá e na Groenlândia, pois esses dois territórios têm grande fluxo de acesso ao Ártico, algo que a Rússia, por exemplo, já tem com o seu território próprio.
Trump tem manifestado também que deseja o fim da guerra na Ucrânia e tem uma posição diferente de Biden em relação ao conflito. Como você enxerga essa posição?
Em relação à guerra, Trump tem uma abordagem bem diferente de Biden. Trump tem falado que quer o fim da guerra na Ucrânia, porque entende que isso não é interessante do ponto de vista econômico para os Estados Unidos. Ele quer que a Europa se ocupe mais dos seus gastos com defesa, que aumente seu financiamento da Otan, e a Europa, por estar ao lado da ameaça da Rússia, se vê um pouco sem alternativa nesse aspecto.
Ao mesmo tempo, ele quer que os europeus comprem cada vez mais gás e petróleo dos Estados Unidos, e não de outros mercados, e ele não precisa da continuidade da guerra na Ucrânia para conseguir esse objetivo. Sua diplomacia segue uma lógica econômica, e Trump considera essas guerras muito custosas. O que ele quer é que a Europa se torne menos competitiva e vire cada vez mais importadora de bens norte-americanos, também mirando limitar a expansão chinesa no continente, o que vai ser mais difícil.
Ele quer implementar medidas que atraiam mais investimentos internacionais aos Estados Unidos, seguindo uma linha geopolítica essencialmente econômica, neste momento em que o mundo vive uma grande instabilidade e se encaminha cada vez mais para a multipolaridade, mas uma multipolaridade instável.
Esse conceito de multipolaridade é muito interessante, você pode ampliar esse entendimento, também comentando os papéis de China e Rússia nesse contexto?
Nós tínhamos, na época da Guerra Fria, dois polos principais, Estados Unidos e União Soviética, o que formava um mundo bipolar. Quando acabou a Guerra Fria, essa realidade mudou, e até tivemos pesquisadores afirmando que era "o fim da história", que os Estados Unidos tinham ganho a disputa com a União Soviética e reinariam absolutos, no que seria uma unipolaridade.
Depois da virada do século, a economia da China começou a crescer de forma muito relevante, e os chineses se inseriram nessa disputa, rivalizando comercialmente cada vez mais com os Estados Unidos, principalmente nos últimos anos. Depois de alguns anos de derrocada, a Rússia também começou a se recuperar, outras nações foram ganhando força, como a Índia, o Brics foi formado, e essa hegemonia dos Estados Unidos que se desenhava após o fim da União Soviética ficou cada vez mais ameaçada, com o surgimento desses novos polos.
Então, um mundo multipolar significa que não há um único polo dominante, vai ter um conjunto de países disputando o poder. Mesmo analisando o Brics, de forma geral, China e Rússia são parceiros, mas também são competidores entre si. China e Índia também, têm suas relações de cooperação, mas também são grandes rivais em muitos temas. Agora com Trump novamente no poder nos Estados Unidos, subvertendo a lógica tradicional da política externa norte-americana, essa multipolaridade pode se acentuar, e o mundo todo está em compasso de espera para ver quais serão os desdobramentos dessa volta na prática.
Você também comentou sobre a União Europeia e como Trump pode exercer maior pressão sobre os europeus. Como você vislumbra o futuro do bloco, também com o crescimento da popularidade de políticos europeus que pregam seu fim?
O bloco realmente está muito pressionado, primeiro pela guerra com a Rússia e agora com a volta de Trump ao poder nos Estados Unidos. Trump já não é um grande apoiador da União Europeia, e a tendência é que se aproxime mais de atores individuais que sejam mais alinhados diretamente a ele, como Meloni na Itália e Orbán na Hungria. A União Europeia enfrenta muitas dificuldades. Se voltarmos um pouco no tempo, sua formação ocorre no contexto da Guerra Fria, com uma ideia de mostrar uma sociedade próspera e moderna em contraponto ao comunismo soviético, mas também preservando um estado de bem-estar social que não se via nos Estados Unidos.
Com o fim da Guerra Fria, a Europa se beneficiou da sua proximidade com os países que eram do bloco soviético, e começou a comprar petróleo e gás muito mais barato, diretamente por oleodutos, e assim essa prosperidade e o estado de bem-estar a que os europeus se acostumaram teve uma sobrevida. Contudo, esse sistema começou a ficar muito custoso e, de certa forma, insustentável, mas o medo em relação à ameaça russa pode justificar, em parte, cortes nos gastos sociais, sendo redirecionados à Defesa.
Mesmo assim, como as pessoas estão acostumadas com essa realidade de bem-estar social por quase 70 anos, cortar algumas dessas benesses torna essas medidas e os líderes que as tomam, extremamente impopulares, o que frustra a população. Como se nota essa frustração? Com o crescimento desses partidos antissistema, que culpam inimigos externos, como a globalização, culpam os imigrantes, pela degradação da qualidade de vida na Europa. E Trump também simboliza essa ideia.