Por Aidir Parizzi
Engenheiro, autor dos livros “Mar Incógnito” e “Embarque Imediato” (BesouroBox, 2022)
Os Sete Povos das Missões foram parte importante da evangelização jesuíta iniciada no século 16. Inácio de Loyola havia fundado a ordem religiosa há menos de meio século, com característica missionária direcionada ao mundo que portugueses e espanhóis descobriam. No Brasil, as missões almejavam também a proteção dos nativos, constantemente atacados pela fúria escravagista dos bandeirantes.
A efêmera civilização chegou ao fim em 1750, quando Portugal e Espanha assinaram o Tratado de Madri e ordenaram a desocupação das missões. Além do interesse territorial, os ibéricos temiam o surgimento de uma nova nação submissa à Companhia de Jesus. Os jesuítas foram expulsos das Américas em 1759 e, pouco depois, a ordem foi extinta por uma bula papal, decisão que só foi revogada em 1814.
Diferentemente da sórdida colonização europeia disfarçada de ideais religiosos, as missões guaranis estão entre os episódios mais inspiradores da História das Américas, aclamadas por pensadores como Voltaire, Francis Bacon e Montesquieu.
Avançamos a 2013, quando Jorge Mario Bergoglio torna-se o primeiro jesuíta eleito para o trono de Pedro. Desde então, o pontífice latino-americano conduz reformas importantes, sem abalar a essência ou a estrutura da Igreja. Diante do esforço por uma Igreja mais inclusiva e integrada aos novos tempos, surgem focos de resistência entre religiosos e leigos ultraconservadores.
A rebeldia é mais evidente entre os norte-americanos, sob a batuta do cardeal Raymond Burke, especialista em direito canônico e ex-membro da Apostolic Signatura, o supremo tribunal da cúria romana. A revolta gira em torno de questões como a comunhão de divorciados e de pessoas em segundo casamento, o apostolado com migrantes e grupos LGBTQIA+, crise climática e desarmamento.
Recentemente, Burke disse que há circunstâncias nas quais é aceitável desobedecer ao papa, arrancando efusivos aplausos. Quando da eleição de Donald Trump para a Presidência, em 2016, o cardeal se declarou feliz com o resultado. Já em 2021, sugeriu que o presidente católico Joe Biden deveria ser excomungado.
A eleição norte-americana deste ano agrava os conflitos. Como assistimos também na política brasileira, a religião é expediente útil nas mãos de políticos inescrupulosos. A propósito, as desavenças nos Estados Unidos servem de alerta para um movimento análogo no Brasil. Ataques a ícones do trabalho social, como o padre Júlio Lancelotti, e rejeição a posicionamentos papais demonstram uma dinâmica semelhante ao sul do Equador.
Ao longo de mais de uma década, Francisco ofereceu a outra face, escolhendo o silêncio e considerando as diferenças normais em uma instituição complexa e global. Todavia, aos 87 anos e com saúde frágil, o papa argentino demonstra que a tolerância tem limites diante de graves ataques à unidade católica. O cardeal Burke teve certos privilégios retirados, como o amplo apartamento em Roma, o cargo no direito canônico e o salário de R$ 35 mil. O papa alega que eram benefícios usados contra a Igreja.
Também foi destituído o bispo Joseph Strickland, voz ativa na política americana e autor de sermões inflamados contra o pontífice. O prelado texano chegou a questionar a legitimidade do papa e a insuflar seu rebanho ultraconservador a rejeitar a eleição de Biden. A Santa Sé alerta para a substituição da fé pela ideologia política, por parte de católicos que parecem mais aliados à aristocracia protestante do que ao Vaticano.
Os ideais jesuítas, em evangelizadores do século 16 ou na conduta do papa Francisco, incomodam as elites e seus paladinos. Não é de hoje que justiça e avanços sociais importunam quem se alimenta da desigualdade.
No dia seguinte à sua eleição, trajando batina simples e sapatos surrados, Bergoglio atravessou a pé a Praça de São Pedro para coletar seus pertences e pagar a conta do hotel onde se hospedara antes do conclave. No mesmo dia, embarcou em um ônibus com outros cardeais para ir a um restaurante e brincou:
– Que Deus os perdoe pelo que acabaram de fazer.
Embora sejam traços de sua personalidade, humor e simplicidade representam também uma atitude de menor formalidade, maior inclusão e foco nos necessitados.
Acima de tudo, as ponderadas reformas se alinham às origens de uma religião fundada por um homem que nasceu em uma estrebaria, jamais pregou a violência como recurso e não citou prosperidade terrena como recompensa. Por sua liderança, Cristo foi martirizado e, ainda assim, venceu no âmbito da fé. Guiado pela espiritualidade e por princípios da Igreja que comanda, o papa jesuíta avança em sua renovadora missão.