Por Léo Gerchmann
Jornalista, autor de “Coligay, Tricolor e de Todas as Cores”, entre outros. Foi correspondente do jornal Folha de S. Paulo em Buenos Aires entre 1997 e 1998
Ao tentarmos desvendar quem foi Eva Perón (1919-1952), talvez uma pista preciosa esteja num enredo em que ela não foi protagonista: quando Sara Rus e o marido Bernardo chegavam à Argentina singrando as águas inóspitas do Rio Paraguai depois de terem sobrevivido ao Holocausto, ele teve a ideia de mandar uma carta à primeira-dama argentina, porque ouvira falar de seu humanismo e de sua generosidade. A tentativa era de furar o bloqueio imposto por circular do próprio governo peronista, que rejeitava o ingresso de judeus. A carta, em polonês, chegou a Eva, alguém a traduziu e, claro, Sara e Bernardo entraram em território argentino, onde anos depois viveriam outro drama quando o filho, o físico Daniel, foi “desaparecido” por militares na ditadura de 1976 a 1983, e Sara, além de ter perdido a família sob o horror do nazismo, tornou-se mãe da Praça de Maio chorando pelo seu menino. Mas essa é outra história.
Agora, a protagonista é Eva. Talvez seja uma simplificação dizer que Eva era atriz e Juan (Domingo Perón), seu marido e presidente argentino desde 1946, era militar. Era a arte e as armas no mesmo casal. Talvez possamos dizer que havia ali sempre o Eros e, eventualmente, o Tanatos. Com alguma segurança, dá para concluir que eram pessoas diferentes.
Se é difícil desvendar alguém com suas complexidades, pior ainda é se arriscar na análise do casal e suas intimidades. Perón teve o mérito de enfrentar seus pares e dar espaço a Eva. Claro, quando a massa exigiu aos gritos que ela fosse candidata a vice na reeleição de 1951, o presidente cochichou aos aliados de alto coturno que Eva saíra de sua costela, mas que ele já não tinha controle sobre a “Negrita”. No fim, além da rejeição imposta pelas carrancas reacionárias de fora e de dentro do peronismo, Eva teve de ceder àquilo que dizia ter sido o único inimigo que não conseguiu vencer: o câncer no colo do útero que a matou em 26 de julho de 1952, um ano depois daquelas eleições e exatamente 70 anos atrás.
Mas as pistas sobre o quão genuíno era o humanismo de Eva aparecem em outros momentos. Chamada carinhosamente de “Evita”, ela foi realmente a voz sincera dos “descamisados”. Uma entre cinco irmãos, era filha da concubina de seu pai. Na época, havia uma hipócrita poligamia tácita. A família oficial na cidade, a “natural” no campo. E Evita, sua mãe e seus irmãos viviam invisíveis nos campos de Los Toldos. Quando ela morreu, aos 33 anos, dezenas de milhões de argentinos choraram por ter sido tão efêmera a sua luminosa visibilidade.
Na Argentina, branqueada pelo uso de africanos na Guerra do Paraguai e pela febre amarela que expulsou quem podia sair de San Telmo e habitar o norte portenho, “negrita” é carinhoso na voz do marido ou pejorativo na voz dos detratores. Mas Eva era forte. Foi ela quem estabeleceu o voto feminino, o reconhecimento legal de filhos naturais e os direitos da terceira idade. Certamente, teria ido mais longe. O contraste com o marido aparece também nos diálogos que tinha com o ator e estilista Paco Jamandreu, seu confidente. “É difícil ser puto e pobre na Argentina”, queixava-se ele. “Sou igual. Sou a puta bastarda”, ela respondia.
Tão necessária era a invisibilidade de Eva, que, quando Perón foi apeado do poder pelo golpe militar de 1955, o corpo embalsamado da “Negrita” foi sequestrado do prédio da central sindical CGT (onde jazia intacto) e escondido na Itália, até que Perón voltou ao poder nos anos 1970 e enfim houve o enterro dela no Cemitério da Recoleta. O impressionante da tara reacionária argentina, tão permissiva e acolhedora com os nazistas que precisavam se esconder, é que Evita, a santa Evita, não poderia aparecer nem morta.
Aliás, cabe fechar com outro episódio este ensaio sobre a artista sensível que influenciou a rudeza do homem de armas. Se Perón foi tíbio diante do nazismo, neutro no combate ao horror e omisso na votação da partilha que possibilitou a autodeterminação israelense, Eva o influenciou a celebrar o primeiro acordo comercial com Israel na América Latina, e a Fundação Eva Perón enviou roupas e medicamentos ao porto de Haifa para os judeus que chegavam a Israel fugindo do horror nazista.
Grata, a líder israelense Golda Meir a visitou em 1951 e, numa conversa entre mulheres, Eva lhe disse: “O renascimento de Israel é fato extraordinário para a humanidade, e todos os peronistas nos olhamos nesse espelho maravilhoso, porque repudiamos o que fizeram aos judeus na Europa e admiramos a forma como souberam superar a tragédia”.
Em 8 de abril, Golda agradeceu em evento no Luna Park lotado. Afinal, foi Eva quem estendeu a mão a Sara e Bernardo, e era inspirado nela que Daniel lutava pacificamente por suas ideias, sendo abatido pelos mesmos que tanto a destrataram.