Deitados no divã, tentando entender sua própria identidade como país e rachados ao meio como poucas vezes se viu na história, os americanos elegem nesta terça-feira mais do que o presidente que tomará posse em 20 de janeiro. Ao depositar seu voto nas urnas, os 225 milhões de eleitores aptos a participar enviarão ao mundo uma mensagem de como emergem de uma campanha suja, disputada entre candidatos com baixa popularidade em busca de eleitores ainda apaixonados por seu país, mas cada vez mais descrentes na política.
Até por isso, os EUA geraram o fenômeno Donald Trump, candidato do Partido Republicano, bilionário do setor imobiliário, o não político que conseguiu aglutinar em sua campanha elementos nobres da cultura americana – o patriotismo, o "american way of life", o gestor que erigiu um império – misturados ao que há de mais podre na sociedade – o machismo, o sexismo, o racismo e a xenofobia.
Personagem de si mesmo, Trump brincou perigosamente com verdades e mentiras, como se estivesse em um de seus reality shows da TV. Conseguiu, por exemplo, chegar ao dia da eleição sem divulgar seu Imposto de Renda – e se orgulha disso. Ao se apresentar como um outsider, reuniu uma multidão de eleitores incomodados com a era Barack Obama. O voto em Trump hoje será o voto anti-Obama e contra sua candidata a sucessora, Hillary Clinton, do Partido Democrata. Para muitos aqui, a ex-senadora é o "mal menor", uma expressão que só estávamos acostumados a ouvir em eleições latino-americanas, mas, nunca até agora, entre os americanos, sempre tão orgulhosos de sua política.
Obama foi o primeiro negro a chegar à Casa Branca de um país marcado pelas tensões raciais. Desde 2008, a crise econômica foi estancada, há retomada do emprego, e os EUA pularam fora de duas guerras. Não são, entretanto, avanços suficientes para garantir que Hillary será anunciada vencedora na noite de hoje. Há uma sensação no ar de que, passada a euforia de se ter a primeira mulher presidente dos EUA, ela repetirá fórmulas passadas, implementadas no governo do marido, Bill Clinton, que podem levar os EUA, de novo, a uma posição de xerife militar do mundo.
Hillary chega ao dia da eleição em vantagem que varia entre três e quatro pontos na maioria das pesquisas, graças à força do Partido Democrata, que colocou nas ruas seus melhores nomes na última semana. Persona non grata internamente, Trump, ao contrário, não contou com a tropa de choque republicana, que nem sequer ainda o engoliu. A democrata também viu anulada, no domingo, a ameaça de uma investigação do FBI sobre o uso indevido de um servidor particular para trocar e-mails sigilosos quando era secretária de Estado.
Se o vento sopra a favor de Hillary hoje é preciso lembrar que, nos EUA, o voto não é obrigatório. Logo, até as condições do tempo influenciam no resultado – se chove, menos pessoas devem ir às urnas, por exemplo. Em Nova York, centro de comando das campanhas e onde ZH está desde domingo, a previsão para esta terça-feira é de sol e mínima de 11ºC.
O voto popular é importante, mas quem elege de fato o presidente é um colégio eleitoral com 538 delegados. O número mágico para chegar à Casa Branca é 270. Nessa matemática da eleição, há Estados, como Nova York, onde o jogo já foi jogado. Hillary deve ganhar. Como Trump deve vencer no Texas. A decisão passa pela indefinição nos chamados swing states, Estados que ora votam em um candidato, ora em outro: Ohio, Pensilvânia, Carolina do Norte, Virgínia e Flórida. Especialmente em Ohio e na Carolina do Norte, que juntos somam 32 delegados no colégio eleitoral, Trump tem leve vantagem nas pesquisas. Hillary precisa virar a partida em pelo menos um deles.
As urnas estarão abertas a partir das 6h até as 20h – os horários variam conforme o Estado –, mas é preciso esperar o fechamento de Havaí e Alasca para iniciar a contagem. A partir daí, os americanos e o mundo ficarão de olho nas projeções dos sites e na TV. Espera-se que o resultado seja anunciado a partir das 2h de quarta-feira no horário de Brasília. Mas o jogo sujo da campanha – com Trump ameaçando não reconhecer o escrutínio – dá elementos para prever uma noite eletrizante.
A história de um país é feita de símbolos e datas. O presidente da nação é conhecido aqui como o comandante-em-chefe. Os EUA têm o 4 de Julho, o 11 de Setembro. Esta terça-feira, 8 de novembro de 2016, tem potencial para entrar para o calendário americano como um dos dias decisivos que mudaram sua história.