Ele nasceu na biblioteca pública de Rabat, no Marrocos, onde o pai trabalhava como zelador e onde a família morou até completar dois anos. Durante a maior parte de sua infância conseguiu esconder sua sexualidade, mas os trejeitos afeminados lhe renderam gozações e violência, mesmo que depois tenham se transformado em inspiração artística.
Há cerca de oito anos, o escritor Abdellah Taïa, hoje com 40 anos, se assumiu perante os leitores de seus livros e a imprensa, aparecendo na capa de uma revista sob o título: Homossexual, apesar de todas as dificuldades.
Com isso, ele se tornou um dos poucos a declarar publicamente sua orientação sexual no Marrocos, onde a homossexualidade é considerada crime. E confessa que o mais difícil foi enfrentar a família. - É bem provável que todo mundo já soubesse, só que nunca ninguém tocou no assunto, resume. Foram necessários vários anos para superar as diferenças.
- Eles choraram e gritaram; eu chorei quando me ligaram, mas nunca vou me desculpar, conta o autor, que hoje vive em Paris.
Em fevereiro, Taïa exibiu seu filme, "L'Armée du Salut", no Festival Nacional de Cinema, em Tânger. Adaptação de seu livro de mesmo título, a promissora estreia na direção deu ao mundo árabe o primeiro protagonista gay. Já exibido nos festivais de Toronto e Veneza, ganhou o prêmio máximo do Festival de Angers, na França, e participou do Festival New Directors, em Nova York, em março.
- L'Armée du Salut" é baseado na infância e adolescência do autor, o despertar de sua sexualidade, o fascínio pelo irmão vinte anos mais velho, os encontros com homens maduros em vielas escuras e a complexa relação com a mãe e as seis irmãs, que gozavam dele por ser muito afeminado e ligado a elas.
Rodado em dois países, o longa deixa claro suas escolhas artísticas: nada de dublagem, nem de música nem de cenas explícitas de sexo. O filme mostra uma viagem realizada com o irmão que muda a relação entre ambos e, anos depois, o caso que teve com um suíço. E foi só após se mudar para a Suíça, com vinte e poucos anos, que voltou a procurar a mãe.
Porém também mostra a raiva e a frustração do jovem Abdellah ao se defender dos avanços de homens mais velhos em uma sociedade que rejeita publicamente os homossexuais.
- Muitos marroquinos têm relações sexuais com homens, mas como pareço afeminado, era o único homossexual. No Marrocos a tensão sexual está presente em todo lugar e eu quis mostrar isso no filme sem apelar para cenas explícitas para me manter fiel a esse comportamento meio que secreto.
Uma noite, quando tinha treze anos e estava em casa com a família, um grupo de homens bêbados começou a chamá-lo na porta de casa, pedindo que descesse para diverti-los, cena traumática sobre a qual falou no artigo que escreveu para o New York Times, A Boy to Be Sacrificed. Depois do incidente, decidiu mudar ? e eliminou os maneirismos afeminados para evitar que homens mais velhos lhe pedissem favores sexuais.
Levou o aprendizado do idioma francês a sério porque queria se mudar para a Europa, longe da opressão; acabou indo para a Suíça em 1998 e se mudou para a França no ano seguinte.
- Não podia viver no Marrocos. O bairro inteiro queria me estuprar. Ali é muito comum o abuso por parte de um primo ou vizinho, mas você não conta com a proteção da sociedade. O estupro é insignificante. Não há nada que se possa fazer, contou em entrevista realizada em uma brasserie parisiense.
Taïa se considera muçulmano por ser muito espiritual e acredita na liberdade pregada no Islamismo por nomes como o filósofo árabe Averroes, o poeta iraniano Rumi e obras como As Mil e Uma Noites.
- Não quero me dissociar do Islamismo. Ele faz parte da minha identidade. Não é porque sou gay que vou rejeitá-lo. Precisamos, sim, resgatar a liberdade que existe na religião.
Suas obras geraram críticas e reações negativas; seu estilo foi execrado e considerado indisciplinado, como se tivesse sido ditado por alguém. Há quem diga que é justamente a crueza de seus textos que o torna autêntico e comovente.
E confessa que sempre quis ser diretor. Tornou-se escritor por acidente, depois de registrar seus pensamentos e experiências em um diário para aprender francês ? e embora isso o tenha ajudado a amadurecer, garante que nunca viu na arte uma forma de exorcizar a dor e a violência a que foi submetido no início da vida.
- Os livros, como o cinema, não resolvem nada. Minhas neuroses são, até certo ponto, o que eu chamaria de criatividade, mas o que produzo artisticamente não me ajuda a purgar a vida real. Nada foi resolvido. Tudo é muito complexo, complicado. Eu acredito mesmo que só o amor cura e acalma a alma atribulada.
Ele garante que não faz distinção entre a escrita e a direção. - Para mim, ambos vêm da mesma fonte: os maravilhosos filmes egípcios que passavam na TV quando eu era criança. Tudo é resultado de imagens. Há muito tempo o meu cérebro é estruturado a partir de imagens de filmes que vi e revi, ao mesmo tempo de forma ingênua e séria. Vou continuar escrevendo livros inspirado nelas ? e nas minhas neuroses, é claro.
Hoje ele mantém um bom relacionamento com a maioria dos parentes, embora ainda surjam momentos constrangedores. O irmão, sempre frio e distante, continua afastado, fato que causa mágoa em Taïa. Afinal, o mais velho é adorado pela família inteira, não só por seu carisma, mas por tê-la salvado da pobreza trabalhando para o governo antes de se casar, aos 35 anos.
Logo depois de se assumir gay a mãe morreu; hoje mantém uma relação cordial com as irmãs. Tem mais de 40 sobrinhos, que simbolizam uma nova geração de marroquinos, de mente aberta, e sempre deixam mensagens de encorajamento na página do Facebook do tio.
Apesar disso, Taïa ainda acha muito difícil voltar para a terra natal.
- Não posso falar com eles. Sou só um ser humano e sei que têm vergonha de mim. Sempre achei isso. Não é que eu queira que tenham orgulho, porque sei que não têm mesmo.
Ele foi um dos únicos escritores marroquinos a denunciar a política de opressão do reino e apoiar veementemente o Movimento 20 de Fevereiro que, em 2011, liderou os protestos exigindo reformas democráticas no país - e descreveu a experiência nos capítulos do livro Arabs Are No Longer Afraid, lançado na bienal do Museu Whitney, em Nova York, em março.
- Não podemos dizer que não há uma cultura de liberdade em um povo que teve alguém como Mahmoud Darwish, diz ele, referindo-se ao poeta palestino morto em 2008.
Taïa está trabalhando no próximo livro, uma história sobre prostitutas marroquinas idosas que, no fim da carreira, viajam o mundo e chegam a Paris. Ele mesmo mora em um pequeno apartamento perto da Place de la République, no centro, e trabalhou como babá durante mais de dez anos para financiar o seu trabalho. Ainda não encontrou a pessoa certa, mas tem certeza de que é ela que vai curar suas feridas.
- Eles choram muito, mas depois vão atrás de vingança. E estão certos. No amor vale tudo, comenta sobre seus antigos amantes.
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