Acima da escrivaninha em uma casa tranquila e organizada com vasos de gerânios pendurados nos parapeitos das janelas e com as paredes cobertas com fotos dos filhos, em Reims, na França, Alain Gauthier mantém 24 arquivos identificados pelos nomes de homens e mulheres acusados por um dos crimes mais chocantes do século XX.
Gauthier e a esposa, Dafroza, vêm colhendo informações há 13 anos sobre cada um dos 24 ruandeses que suspeitam terem participado do genocídio ocorrido em 1994 em Ruanda. Os suspeitos são membros do grupo étnico hutu que agora têm vidas confortáveis na França e negam qualquer envolvimento no assassinato de mais de 800 mil pessoas - a maioria das quais tutsi - em apenas cem dias.
- Eles simplesmente negam. Eles sempre negaram, criaram outra história, apagaram essa parte por completo de suas vidas. Eles foram obrigados a fazer isso, caso contrário essas pessoas terminariam em um hospício. Não dá para viver com um crime desses - afirmou Dafroza Gauthier, 59 anos, engenheira química e tutsi de Ruanda.
O mais importante é que, ao entrar com processos civis contra hutus suspeitos de serem fugitivos, o casal questionou as autoridades francesas e a imprensa em relação à antiga proteção do país aos fugitivos ruandeses.
- O que nos impele é que os assassinos sejam julgados, pela História, pelas vítimas. É a nossa vez, os vivos, enquanto sobreviventes de clamar por justiça porque se não o fizermos, ninguém o fará, e ninguém vai pagar pelo que aconteceu - declarou Dafroza.
Há muito tempo acusada de fornecer armas e treinamento militar aos hutus antes do genocídio, a França nunca condenou ninguém incriminado por cumplicidade no genocídio de Ruanda. Porém, depois de retomar relações diplomáticas com Ruanda em 2009, suspensas em 2006 quando um juiz francês acusou um grupo de ruandeses de terem tramado, em 1994, derrubar o avião do presidente de Ruanda à época, provocando o genocídio, o governo federal designou cinco juízes para investigar a questão dos fugitivos ruandeses e abriu uma seção policial especializada em crimes de genocídio. Em fevereiro, os juízes devem dar início ao primeiro processo criminal contra um fugitivo ruandês acusado de genocídio.
Para o casal, os crimes não podem ser apagados. Segundo os dois, somente levando os acusados à Justiça eles poderão ajudar as vítimas e familiares a perdoar e tocar suas vidas. Na França, eles costumam ser comparados a Serge e Beate Klarsfeld, casal que perseguiu criminosos nazistas na década de 1950.
Dafroza Gauthier, mulher elegante de Butare, uma das maiores cidades de Ruanda, perdeu a mãe e perto de 80 parentes no genocídio. Alain Gauthier, 65 anos, diretor aposentado de uma escola do ensino médio, morou no país quando jovem, lecionando francês em uma escola local, onde os dois se conheceram.
Para o casal, a notícia de que as autoridades francesas estavam preparadas para dar início ao primeiro caso de genocídio servia como desagravo aos seus 13 anos de trabalho. Eles encontraram o réu, Pascal Simbikangwa, cinco anos atrás, em sua casa em uma favela de Kaweni, cidade na ilha de Mayotte, território francês no Oceano Índico.
- Eles estavam sozinhos, eles lutaram e seu trabalho é colossal - afirmou Maria Malagardis, jornalista do jornal diário francês Libération, que escreveu um livro sobre a investigação levada a cabo pelo casal.
Os Gauthiers se consideram investigadores amadores, pois nenhum dos dois estudou direito criminal e ambos passaram a vida profissional atuando em áreas diferentes.
Nascida em 1954, Dafroza Gauthier cresceu em Kigali, capital ruandesa, onde conheceu o marido. De 1973 a 1977, ela foi forçada a viver como refugiada política na Bélgica, onde estudou química. Em 1974, ela foi visitar Alain Gauthier no sul da França, para onde ele havia se mudado depois da estada em Ruanda, e os dois se casaram em 1977.
Anos mais tarde, o casal se estabeleceu em Reims e teve três filhos, Violaine, Emmanuel e Sarah. Eles nunca moraram em Ruanda novamente, embora fossem lá quase uma vez por mês para investigar.
Em muitos aspectos, os dois tinham uma vida de classe média típica até aquele dia em abril de 1994, quando começaram os telefonemas.
- Passamos o dia grudados ao telefone. As pessoas nos diziam: 'Na casa de fulano, estavam todos mortos. Eles foram mortos hoje cedo.' Não significava mais nada. Não consigo mais expressar em palavras. Nós estávamos perdidos, nos perguntando se aquilo era verdade. Quando fomos até lá, percebemos a magnitude das coisas quando os conhecidos não estavam mais lá, e até mesmo suas casas haviam desaparecido - contou Dafroza Gauthier.
Dafroza Gauthier soube que a mãe foi baleada por um general hutu que mais tarde fugiu para Camarões, onde morreu em liberdade. Ela prometeu a si mesma que ainda que não conseguisse encontrar o assassino da mãe, buscaria justiça para os milhares de vítimas tutsis mortos por serem "bodes expiatórios, gente indesejável".
Em 2001, ela viajou com o marido para Bruxelas para o julgamento de quatro ruandeses condenados por cometerem crimes de guerra durante os massacres em massa em 1994. Lá, o casal conheceu o diretor de uma associação que procurava fugitivos do país na Bélgica.
- Ele nos perguntou: 'Por que não fazem isso na França? Existem centenas deles por lá. E foi o que nós fizemos - contou Alain Gauthier.
Naquele ano, o casal criou uma associação, o Coletivo de Autores Civis para Ruanda, para ter base legal e entrar com processos civis contra fugitivos. A polícia francesa deteve três dos 24 fugitivos no país ao mesmo tempo, e perto de uma dúzia foi investigada formalmente.
Somente um foi condenado pelo Tribunal Criminal Internacional para Ruanda das Nações Unidas, criado em 1994 pelo Conselho de Segurança para processar pessoas acusadas de genocídio. Hoje em dia, Alain Gauthier diz acreditar que mais de cem fugitivos ruandeses vivam na França.
- Porém, enquanto não tivermos os nomes, fica difícil saber.
Ele e a esposa têm trabalhado incessantemente desde então, interrogando promotores, prisioneiros e vítimas do genocídio em Ruanda. Eles coletaram informação online e por meio de pesquisa em arquivo e entrevistas com antigos delegados de polícia, magistrados e médicos - pessoas com o dinheiro e as conexões para fugir do país natal. O casal constatou que diversos fugitivos, alguns dos quais são procurados por Ruanda, pela Interpol e o tribunal, se tornaram cidadãos franceses respeitados.
Alain Gauthier, que ouviu atentamente as lembranças sombrias da esposa, dedicou boa parte do tempo e da energia à caça dos criminosos, muitas vezes dormindo apenas algumas horas por noite. Nos últimos 13 anos, ele nunca faltou a uma audiência nos tribunais envolvendo fugitivos.
Há pouco tempo em Paris, Alain Gauthier foi se sentar em uma cafeteria perto do tribunal onde compareceu à audiência de um suspeito, Claude Muhayimana, ex-motorista acusado de participar de vários massacres em 1994.
Quando Muhayimana, vestindo agasalho branco, veio se sentar com a família a pouca distância da mesa de Alain Gauthier e lhe dirigiu um olhar de desdém, Alain desviou o olhar, quase tranquilo:
- Conheço esses olhares. Já estou acostumado com eles.
Investigação
Casal luta para levar à Justiça francesa suspeitos de genocídio em Ruanda
O crime que matou mais de 800 mil pessoas - a maioria do grupo étnico tutsi - ocorreu em 1994
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