São Nicolau apareceu em Amsterdã duas vezes em um fim de semana de novembro.
Na manhã de domingo, sob um céu carregado, saiu de um barco a vapor perto do Museu Marítimo para montar um cavalo branco e, então, de capa vermelha e dourada e mitra na mão, sob os aplausos de milhares de crianças e seus pais, desfilou pelo centro acompanhado de seu servo fiel, Black Peter.
Bom, para ser mais preciso, não era um Black Peter só; isso porque à volta do santo que passa por várias cidades holandesas nesta época do ano, em uma mistura de Carnaval e Natal, em antecipação à festa de seu dia, seis de dezembro há sempre centenas deles em um turbilhão de atividades. Há Black Petes tocando música e cantando; Black Petes andando a cavalo; Black Petes de perna de pau distribuindo balões e doces, Black Petes escalando as fachadas de lojas de departamentos em cordas e outros tantos sapateando os telhados de prédios de seis andares.
Entretanto, outro São Nicolau chegou no sábado à tarde e se sentou, discretamente, em um palco improvisado de uma praça pequenina perto da Bolsa de Valores, os dreads dançando sobre a mitra vermelha e dourada, mas sem o Black Pete porque se o Black Peter é um holandês branco com a cara pintada, esse São Nicolau é membro da pequena comunidade de negros do país e liderou a manifestação de centenas de pessoas, brancas e negras, para denunciar o racismo por trás de Black Pete.
A chegada de São Nicolau, conhecido por essas bandas como Sinterklaas (que os holandeses levaram para Nova Amsterdã, hoje Nova York, onde ganhou o nome de Santa Claus (Papai Noel), carregando suas próprias malas), é um evento em vários países europeus, embora só na Holanda e algumas partes da Bélgica seja acompanhado por Black Peter, ou Zwarte Piet em holandês. Representado por homens e mulheres de rosto pintado, ele usa roupas renascentistas luxuosas (segundo os críticos, o tipo de vestimenta com que os lordes da época vestiam os escravos para posar para os antigos mestres), tem lábios carnudos vermelhos e usa peruca afro ou dreads falsos. Os brincos de argola já fizeram parte da fantasia, mas desapareceram por causa do número de críticas.
Black Pete é um sujeito meio lerdo que canta, dança e brinca o tempo todo, para delírio das crianças. Embora os holandeses se orgulhem de sua tolerância, sentem agora que uma tradição está ameaçada e pode ser sacrificada pela correção política de quem não a compreende. Coitado do São Nicolau, símbolo eterno de gentileza e generosidade, se tornou tema de polêmica e até de comportamentos desprezíveis.
Há dois anos, quando Quinsy Gario apareceu em um desfile de São Nicolau com uma camiseta em que se lia "Black Pete é racista", foi jogado ao chão, algemado e levado pela polícia. Nascido em Curaçao e criado em São Martinho, territórios holandeses no Caribe, ele chegou a Amsterdã em 2002 para estudar teatro e TV. No protesto do sábado, circulava entre os manifestantes que levavam cartazes com dizeres como "Libertem Pete" e "Quero voltar a amá-la, Holanda". Um deles trazia uma foto do presidente Barack Obama e a frase, em inglês: "Deixem o nosso rosto fora disso"!
Black Pete, disse Gario à multidão, - não seria aceito em nenhum lugar do mundo - . Em inglês, acrescentou: - O mundo está de olho e parece que a Holanda está deixando muito a desejar -
- Eu gostaria que as pessoas assumissem a responsabilidade de mudar esse estado de coisas. Ninguém assume a responsabilidade por essa figura - , disse ele depois, em um bate-papo.
E, de fato, políticos de Amsterdã e outras cidades holandesas são sensíveis à opinião pública. Uma página em apoio ao Black Pete no Facebook mobilizou dois milhões de pessoas, número surpreendente em um país de 17 milhões de habitantes, mesmo que as pesquisas mostrem que trinta por cento deles admitam que o personagem é um problema. - Black Peter é negro. Não há o que fazer a respeito - , declarou o primeiro-ministro Mark Rutte recentemente.
Em outubro, o prefeito de Amsterdã, Eberhard van der Laan, em uma carta escrita com todo o cuidado à Câmara Municipal, aconselhou a casa a rejeitar a petição que exigia o cancelamento do desfile de chegada de São Nicolau por causa do Black Pete. Porém, sendo pai de cinco filhos, resultantes de dois casamentos, admitiu que a figura - oferece potencial para resultar em manifestações de racismo caso os negros sejam chamados de Black Peter no dia a dia, por exemplo. - E como bom holandês, acrescentou: - O mais importante é a gradualidade -
Há quem diga, no entanto, que isso não funciona. Para Marjan Boelsma, que trabalha em um grupo antidiscriminação em Roterdã, Black Peter é - a representação do racismo. Recomenda-se uma mudança lenta, mas não dá para combater o racismo gradualmente. -
Naquele domingo de novembro, Patrick Winter, sua mulher e os dois filhos, de cinco e quatro anos, observavam, do alto, o porto e a chegada de São Nicolau no barco, cercado por várias embarcações menores. Os avós de sua mulher são imigrantes do Caribe e, a princípio, ela ficou chocada com a figura de Black Pete afinal, muita gente que nasceu nas ilhas descende dos africanos levados para lá como escravos. - Levou um tempão para ela aceitar - , conta Winter, um vendedor de 44 anos. Era a primeira vez que a família participava da festa. - No fim das contas, é só para as crianças mesmo - , contemporiza ele.
Dennis de Vreede concorda e conta que, no dia cinco de dezembro, véspera do dia do santo, o São Nicolau e os dois Black Petes que ele contratou pela internet vão chegar à sua casa para distribuir presentes e fazer um balanço do comportamento de seus três filhos, que têm cinco, quatro e três anos. Diretor financeiro de um grupo de exploração submarina aos 44 anos, ele afirma que - a festa é das crianças e elas nem pensam nesse tipo de coisa -
- Só os adultos é que veem esse detalhe mas, afinal, o que é que estão discutindo? Será que não há problemas mais importantes no mundo? - , ele questiona.
Os norte-americanos que assistem ao desfile, principalmente os negros, ficam confusos. Quando Julie Dastine e duas amigas, todas negras, atravessaram a Praça Dam, de repente se viram cercadas de cinco garotas fantasiadas de Black Pete, com direito a peruca afro e lábios carnudos, que queriam bater uma foto com as turistas.
- Não acho que temos o direito de comentar a tradição dos outros - , diz Dastine, que é cabeleireira de Rockland, em Nova York. - A princípio, fiquei meio confusa e só consegui reparar no rosto pintado delas. Sinceramente, ainda não sei como me sinto em relação a isso. -
Natal
Polêmica racista circunda as figuras de São Nicolau e Black Peter na Holanda
Críticos acreditam que o pitoresco personagem Black Peter, personagem da cultura dos países baixos, tem traços que indicam racismo
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