À primeira vista, pelo menos, não existe muita coisa em Chen Xiaolu, 67 anos, que sugira uma vida a lamentar.
Filho de um dos generais fundadores do Partido Comunista chinês, ele desfrutou privilégios em tenra idade e depois uma carreira de consultor empresarial que o levou a viajar ao redor do mundo. Agora, ele relaxa nos campos de golfe da Escócia, do sul da França e evita os ternos escuros e o cabelo preto de difícil manutenção dos chineses mais ricos preferindo camisas informais e cabelo grisalho.
Porém, por baixo do exterior genial existe a lembrança que o assombra há quase 50 anos. Lá estava ele, de volta ao ensino médio, membro novato do time de vôlei e líder estudantil na Revolução Cultural de Mao Tsé-Tung, ordenando que os professores fizessem fila no auditório, com orelhas de burro nas cabeças encurvadas. Ele ficou ali, empolgado e orgulhoso, enquanto milhares de alunos gritavam críticas aos professores.
Então, de repente, um bando invadiu o palco e bateu neles até que caíssem no chão, com sangue escorrendo das cabeças. Ele não objetou. Simplesmente fugiu.
- Eu estava assustado demais - , ele relembrou recentemente durante uma série de entrevistas em um restaurante nos arredores da Praça da Paz Celestial, perto de sua antiga escola, a número oito, destinada aos filhos da elite de Mao. - Eu não conseguia evitar. Tinha medo de ser chamado de contrarrevolucionário, de ter de usar chapéu de burro. -
Uma onda de confissões sobre a Revolução Cultural provinda de antigos guardas vermelhos, a maioria dos quais aposentados de formação modesta, surgiu nos últimos meses. Porém, foi a decisão de Chen de se manifestar em agosto com um pedido de desculpas público que atraiu mais atenção, elevando a esperança de que uma nação tão determinada em definir o futuro possa finalmente confrontar os horrores do seu passado.
- Muitas pessoas estão pensando com carinho nos bons tempos da Revolução Cultural e dizendo que ela foi apenas contra autoridades corruptas. Contudo, muitas coisas aconteceram na Revolução Cultural que violaram os direitos das pessoas. A maioria na China não vivenciou a Revolução Cultural, e aqueles que a vivenciaram têm de contar às pessoas a seu respeito. -
O remorso de Chen se destaca por causa de sua estatura, antes e agora. Ele é bastante franco ao afirmar que como filho de Chen Yi, fundador da China comunista e ministro do exterior durante muito tempo, recebeu o manto de uma autoridade imensa durante os primeiros e decisivos dias da Revolução Cultural.
- Eu tenho responsabilidade direta pelas denúncias e críticas, e trabalho forçado para a reeducação dos líderes escolares, e alguns professores e estudantes - , Chen escreveu em postagem em um blog dos ex-alunos de sua escola, em agosto, que rapidamente rodou a internet. - Eu me rebelei ativamente e organizei as denúncias dos líderes escolares. Mais tarde, quando servi como diretor da escola do Comitê da Revolução, não tive coragem suficiente para brecar os processos desumanos. -
- Minha desculpa oficial chega tarde demais, mas para a purificação da alma, o progresso da sociedade e o futuro da nação, é preciso fazer esse tipo de pedido de desculpas - , ele concluiu.
O pedido gerou respostas variadas. Pouco mais da metade dos comentários no site dos ex-alunos era de elogios. Nos sites chineses, muitos questionavam por que era necessário remexer em feridas antigas.
Em grande medida, a Revolução Cultural permanece escondida na China enquanto governos sucessivos desestimularam discussões sobre o tumulto e o terror que Mao orquestrou para perpetuar seu governo, mas que quase arruinou o país.
Deng Xiaoping repudiou a Revolução Cultural em 1979, e o PC admitiu que fora um erro, mas nunca houve um relato completo.
Um tema particularmente sensível para o partido tem sido o número de pessoas mortas.
Somente em Pequim, aproximadamente 1.800 pessoas morreram durante agosto e setembro de 1966, o auge do frenesi quando Mao usou estudantes pela primeira vez como guardas vermelhos para atacar o partido, segundo os historiadores norte-americanos Roderick MacFarquhar e Michael Schoenhals. De acordo com estimativas, de 1,5 milhão a três milhões de pessoas morreram na China de 1966 a 1976.
Um historiador chinês da Revolução Cultural, Xu Youyu, descreveu o pedido de desculpa de Chen como "muito incomum" porque os antigos guardas vermelhos - toda uma geração de chineses agora com 60 e tantos anos - geralmente justificam suas ações durante a Revolução Cultural e preferem enfatizar seu papel como vítimas e não como perpetradores; eles raramente se desculpam em particular, que dirá em público.
A fatídica cerimônia de críticas dos professores na sala de concertos Zhongshan, arredores da Cidade Proibida, organizada por Chen foi brutal antes mesmo de começar, afirmou Huang Jian, presidente do grupo de ex-alunos.
A caminho do auditório, os estudantes "brandiam chicotes", fustigando o diretor da escola, Wen Hanjiang, enquanto o arrastavam pelos braços e pernas, disse Huang.
Wen, agora com 89 anos e morando em Pequim, onde Chen recentemente o visitou, foi também espancado no palco.
De volta à escola, a atmosfera escureceu. A autoridade mais graduada do partido no estabelecimento, Hua Jia, cometeu suicídio. Ela tirou a própria vida depois de duas semanas de surras e de ser alimentada somente com migalhas de comida no almoxarifado onde estava aprisionada, contou Chen.
Contaram-lhe a respeito do suicídio e ele correu à sala, onde encontrou o corpo no chão.
- Ela usou um barbante amarrado ao parapeito da janela, passou o nó pelo pescoço e a seguir se ajoelhou para se enforcar. -
Chen deu os detalhes rápida e silenciosamente, com um quê de vergonha nas palavras. No final das contas, ela foi integrante leal do Partido Comunista durante 30 anos.
Durante o tumulto inicial, Chen morava em casa com os pais em Zhongnanhai, o grande complexo no centro de Pequim onde autoridades graduadas do partido recebiam casas tradicionais com quintal.
Segundo ele, seu pai insistia para que a família não discutisse a Revolução Cultural em casa.
- Trocando em miúdos, meu pai falou que eu deveria participar da Revolução Cultural, mas sendo cuidadoso e prudente. -
Eles mantinham um "biombo chinês" de silêncio em relação à violência.
- Nunca falei nada ao meu pai sobre o suicídio - de Hua. - Meu pai sabia que poderiam me usar para torná-lo um alvo. -
A vida era fácil em Zhongnanhai. As crianças costumavam ser convocadas para ver Mao nadar em uma das duas piscinas de 50 metros - aberta no verão, coberta no inverno. Aconteciam partidas de basquete, remava-se em um lago e viam-se filmes nos finais de semana.
Logo, no entanto, problemas atacaram o centro da família Chen. Em um discurso no começo de 1967, Chen Yi ousou criticar a Revolução Cultural. Mao o jogou para escanteio, e o homem que havia saudado todo líder estrangeiro à nova China foi submetido a uma humilhante sessão de autocrítica e ordenado a ficar em casa.
Depois que seu pai caiu em desgraça, Chen parou de morar na casa "para manter mais distância". No verão de 1968, Mao dispersou os estudantes pelo interior. O primeiro-ministro, Zhou Enlai, poupou Chen desse destino enviando-o ao exército.
Em 1972, Chen Yi morreu de câncer intestinal, um homem em frangalhos. Chen Xiaolu voltou do exército para o funeral. Do nada, Mao apareceu vestido de pijama e sobretudo para homenagear seu pai. Diante da família Chen, Mao o reinstalou no panteão dos grandes revolucionários ao chamá-lo de um "bom camarada".
Naquela tarde, Chen bebeu cerveja com um amigo da escola, Ji Sanmeng, e lhe mostrou um poema, contou Ji, sobre como seu pai, um herói, fora maltratado nos últimos cinco anos nas mãos de Mao e seus homens.
Então, a fé de Chen em Mao havia evaporado, embora ele nunca o tivesse dito publicamente.
China
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