Durante os muitos anos em que foi dissidente, um editor de livros atacou o governo autocrático do Egito e sua censura, ajudou os revolucionários durante o levante e foi às ruas para proteger liberdades que achava ter ajudado o país a conquistar.
Porém, como muitos outros, Mohamed Hashem se diz derrotado pelos últimos acontecimentos. Cansado da violência, da repressão, dos confrontos civis cada vez mais comuns desde que o Exército depôs Mohamed Morsi, em julho e de esperar dias melhores, ele decidiu deixar o país, surpreendendo os amigos e uma legião de fãs.
- Não vou adiar a felicidade até morrer - , disse ele.
O Egito, incapaz de oferecer esperança ou oportunidades, há gerações força seus cidadãos a tentar a sorte em países mais ricos, mas muitos daqueles que fazem parte do novo êxodo confessam odiar ter que ir embora; outros adiaram a decisão na esperança de que o levante contra Hosni Mubarak, em 2011, pudesse abrir caminho para uma vida melhor.
A mudança sinaliza um momento sombrio. Muita gente diz não ver fim para o conflito entre o Exército e os oponentes islamistas nem espaço para os defensores de um ou de outro.
Há quem lamente o estreitamento do horizonte político do país e a possibilidade, cada vez mais provável, de um militar se tornar o próximo líder. Houve até quem se mostrasse chocado por ver como os amigos e vizinhos se mostraram complacentes com o banho de sangue.
E ninguém encontra alívio para as frustrações do dia a dia, o trânsito, a alta dos preços, o acúmulo de lixo nas ruas.
Não há dados que mostrem que a taxa de emigração cresceu - e a possibilidade continua inatingível para a maioria, reservada apenas para aqueles com qualificações ou contatos que garantam oportunidades no exterior. Nas entrevistas que fiz ao longo de vários dias, no entanto, as pessoas confessaram que a ideia é cada vez mais frequente e mais concreta; para quem têm condições, é só uma questão de definir a data.
Enquanto estudava para os exames da faculdade de Medicina, Tareq Nour, de 23 anos, passava por dificuldades imensas: a caminho do trabalho, em um hospital público, ficava preso tanto por causa dos protestos dos simpatizantes de Morsi como pelas batidas das forças do governo. Seu salário, cerca de US$ 45/mês, era minguado demais até para chamar de esmola, diz ele. O toque de recolher imposto pela polícia restringiu ainda mais a sua vida.
Estava se arriscando para ajudar a construir um futuro diferente, trabalhando como voluntário em um hospital de campo durante os 18 dias da revolta contra Mubarak, quando foi ferido por chumbinho.
- Estamos voltando ao velho sistema. Não conseguimos mudar o país - , afirmou.
E completou dizendo que estava se preparando para ir para os EUA mais por necessidade que por vontade.
- Preciso sair daqui - , lamentou.
Embora o povo se sinta cada vez mais desgastado, o governo insiste em dizer que o país está trilhando um caminho democrático e terá uma constituição que, por sua vez, levará a novas eleições. Ao mesmo tempo, muitos temem que o processo apenas confirme a restauração da velha ordem, como se vê pelos nomes dos generais e oficiais sugeridos como candidatos à presidência - incluindo o do General Abdul-Fattah el-Sisi, o poderoso Ministro da Defesa.
Com medo de um futuro que já pode estar traçado, Sarah Radwan, designer gráfica de 33 anos, disse que só estava esperando chegar o contrato para ir trabalhar no Catar e que não se arrepende de ter que deixar a pátria para trás.
- Depois do levante contra Mubarak, eu até achei que as coisas iam melhorar, mas foi uma utopia passageira - , resigna-se.
Diz também que se decepcionou muito com o ano que Morsi passou na presidência e teme o retorno dos militares. A frustração acumulada nos últimos 2,5 anos fez com que ela, assim como muitos outros, chegasse a uma conclusão desanimadora sobre a (in)capacidade de mudança da sociedade - e de dizer coisas que seriam impensáveis em 2011.
- A corrupção está arraigada dentro de nós. Achei que ia levar uns cinco anos para arrumar a casa, mas não demos nem o primeiro passo ainda. -
Como muitos egípcios, o pai de Sarah já trabalhou na Arábia Saudita e avisou a filha sobre o peso da solidão do exílio.
- Nunca pensei em um dia ir embora - , lamenta ela, acrescentando que, no passado, tinha até pensado em se mudar para o litoral, para Alexandria, no Mediterrâneo, ou Hurghada, no Mar Vermelho.
- Eu amo este país. Só queria que as pessoas se acalmassem. -
O desespero permeia as várias ideologias e ameaça reforçar a fuga de capital humano que afeta o desenvolvimento do Egito há décadas. Depois que o governo reprimiu os simpatizantes de Morsi, matando centenas nos protestos e prendendo milhares, os islamistas estão sendo acossados, repetindo ciclos de repressão e exílio do passado.
E aqueles que esperavam que o governo, com apoio dos militares, trouxesse um pouco de estabilidade - mesmo que com mão de ferro - dizem que estão indo embora porque não há segurança.
Mostafa Sobhy, é um professor de Farmacologia de 32 anos cujo salário depende das aulas que dá para os universitários estrangeiros - só que com o país mergulhado na crise política e os temores do crescimento da insurgência militar, eles simplesmente desapareceram. Por isso, teve que aceitar um emprego em Najran, cidadezinha na Arábia Saudita.
- Na época de Mubarak pelo menos eu estava melhor - , reclama.
Em outubro, o editor Hashem escreveu no Facebook que o "pesadelo" do exílio logo se tornará realidade.
- Eu me recuso terminantemente, até morrer, a optar entre a amargura dos militares e a manipulação da religião. Vou deixar o país porque nenhuma das duas opções que, aliás são conflitantes, reflete o espírito da grande mudança. -
- A gente se encontra na próxima revolução - , escreveu.
Em uma entrevista alguns dias depois, feita no escritório de sua editora, a Merit, Hashem riu ao se lembrar das reações negativas geradas pelo post.
Alguns de seus amigos, incluindo poetas e artistas famosos no país, ligaram para criticá-lo.
- Eles me chamaram de covarde, disseram que eu estava fugindo - , conta.
Outros compreenderam sua decisão. Um seguidor, Mohamed Abdel Nasser, afirmou que a atitude de Hashem era a única saída até que a "loucura" que acomete o país passe.
As paredes à volta de Hashem estavam forradas de centenas de livros que já publicou, incluindo alguns que abordam temas polêmicos e proibidos que outras casas recusaram. O seu post no Facebook parece ter sido mais um manifesto que um plano, pois ainda não sabe qual será seu destino - talvez um dos países onde foi premiado por defender a liberdade literária ao longo dos anos, como a Alemanha ou os EUA.
Muitos visitantes, incluindo jovens artistas que já passaram horas nos eventos literários organizados por Hashem, passaram para cumprimentá-lo. Ele confessou que foram essas pessoas que o fizeram até reconsiderar a ideia de ir embora.
- Há pessoas endeusando Sisi, e outras endeusando Morsi. Todos os homens de Mubarak estão aí, soltos, impunes, como se nada tivesse acontecido. Não tem mais lugar para gente como nós aqui. -
E concluiu: - Estou perdido. Totalmente perdido. -
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