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A corrida durou somente alguns segundos e terminou com o som de um tiro. Shamil Abdulayev, então com 24 anos, tentava fugir de um grupo de homens interessados em sequestrá-lo. Eles usavam máscaras de esquiador e se locomoviam em um sedã branco da Lada com janelas escurecidas.
- Meu filho foi ferido na perna. Segundo as testemunhas, eles bateram em sua cabeça com a coronha do fuzil, puseram algemas nele e o jogaram no carro - contou sua mãe, Patimat Abdulkadyrova, a respeito do episódio neste verão do Hemisfério Norte. O carro foi embora, desaparecendo em meio ao tráfego da cidade com Abdulayev.
Os Jogos Olímpicos de Inverno de 2014, em Sochi, Rússia, começarão dentro de meses, mas os moradores desta cidade, a capital do Daguestão, dizem estarem sentindo os efeitos há meses. Determinadas a não ver o evento marcado por um ataque terrorista, as autoridades russas estão agindo com rigor nesta região em ebulição no norte do Cáucaso - inconfortavelmente perto da cidade olímpica - capturando pessoas suspeitas de serem militantes e as mantendo presas sem acusação formal, segundo ativistas dos direitos humanos.
As repúblicas do norte do Cáucaso da Chechênia e do Daguestão, que há muito tempo são pontos de insurgência islâmica e de ataques terroristas, abrigam o conflito atual mais sangrento da Europa, concluiu relatório recente do International Crisis Group. No ano passado, o conflito matou pelo menos 700 pessoas e feriu outras 525, de acordo com o estudo. Na primeira metade deste ano, pelo menos 242 pessoas morreram e 253 ficaram feridas.
O Emirado do Cáucaso, principal grupo terrorista islâmico da região, divulgou um vídeo em julho pedindo para os partidários atacarem as Olimpíadas, acusada pela organização de ser realizada "sobre os ossos" de muçulmanos mortos.
Durante um tempo, a Rússia tentou aplicar anistias e desenvolvimento econômico para conter a violência na região, incluindo a ideia de construir estações de esqui em províncias montanhosas para coincidir com as Olimpíadas. O Emirado do Cáucaso respondeu causando a explosão de um teleférico para esquiadores.
Com a chegada das Olimpíadas, "todas as medidas suaves estão sendo deixadas de lado", assegurou durante entrevista Varvara Pakhomenko, pesquisadora do International Crisis Group.
- Estamos vendo no Daguestão a explosão de casas de parentes de militantes, desaparecimentos forçados e tortura. -
O desenvolvimento econômico nunca avançou muito em Makhachkala, cidade abandonada que recebeu um pouco de atenção no primeiro semestre como lar eventual da família dos suspeitos pelo atentado contra a Maratona de Boston, Tamerlan e Dzhokhar Tsarnaev.
À beira-mar, generosamente chamada de Riviera do Cáspio, hotéis espalhafatosos, com letreiros de neon apresentando as formas piscantes de palmeiras, ondas ou garotas dançando, esperam por turistas que raramente aparecem.
Quando a brisa matinal se forma no Cáspio, sacolas plásticas e poeira voam pelas ruas cheias de buracos da cidade mais perigosa da Rússia.
Policiais montam guarda nos cruzamentos, vestidos com camuflagem urbana com riscos brancos e azuis.
Em setembro, o presidente russo, Vladimir Putin, disse que as forças armadas e o Ministério do Interior deveriam agir com maior vigor para melhorar a segurança antes das Olimpíadas, mas a repressão começou para valer em janeiro, de acordo com analistas e grupos de direitos humanos.
Não exatamente em guerra, mas também sem ter conquistado a paz, a região se vê envolvida no que parece uma guerra suja ao estilo latino-americano, um conflito entorpecido, em marcha lenta e cheio de abusos. Sequestros são uma característica, ainda que não reconhecida, das táticas russas contra insurgência há anos.
Casos relatados de desaparecimentos forçados aumentaram desde janeiro, quando um novo governador regional chegou ao Daguestão e mudou a abordagem da segurança diante das Olimpíadas, segundo a Memorial, organização russa pelos direitos humanos.
Neste ano, 58 foram raptadas por homens em carros sem identificação, 19 das quais sumiram de uma vez, embora com pistas apontando para os serviços de segurança, segundo a sucursal do grupo do Makhachkala.
- O número de desaparecimentos vem crescendo de forma constante. Nós recebemos famílias aflitas em nosso centro toda semana - disse Serazhutdin Datsiyev, pesquisador local do grupo.
Uma parte considerável da confusão se origina de vendetas entre famílias de autoridades e de agentes de segurança e as dos militantes, explicam analistas da região.
O Kremlin já reconheceu o problema e tem reprimido as autoridades locais acusadas de usar os cargos para promover rixas pessoais. Enquanto os defensores dos direitos humanos saudavam a medida como uma ação atrasada, ela só serviu para aumentar ainda mais a sensação geral de pandemônio antes das Olimpíadas.
Em apenas um exemplo das histórias espantosas em circulação, os moradores de Makhachkala ficaram sabendo em setembro que investigadores federais acusaram um ex-prefeito, Said D. Amirov, de tramar um ataque terrorista usando um míssil portátil antiaéreo lançado do ombro.
De acordo com o jornal "Kommersant" os investigadores afirmaram que Amirov planejava usar o míssil para derrubar o avião do chefe do fundo de pensão do Daguestão e jogar a culpa nos militantes. O plano somente teria fracassado porque o prefeito e dois cúmplices não acharam alguém com treinamento para disparar o míssil.
Se as acusações parecem improváveis, imagine que Amirov diz ter sobrevivido a 16 tentativas de assassinato, que o deixaram em uma cadeira de rodas e lhe renderam o apelido de Koschei, o imortal, por causa de um personagem de conto de fadas russo.
Ainda não está claro se o aumento dos sequestros de suspeitos de militância ou a política aberta de prender autoridades locais acusadas de corrupção está tendo muito efeito.
Ramazan J. Jafarov, subchefe de segurança do governo regional daguestanês, negou durante entrevista que a polícia estaria detendo suspeitos em segredo, salientando a política federal de se concentrar em policiais e autoridades locais que abusam do poder, como no caso do antigo prefeito.
Os residentes e os defensores dos direitos humanos riram de suas negações. Depois que Abdulayev desapareceu na traseira de um Lada, em junho, médicos de um hospital contaram aos parentes que o entregaram à polícia depois do tratamento, conforme contou sua mãe.
Contudo, em termos oficiais ele simplesmente desapareceu.
- Nós perguntamos todo dia há meses, procurando e procurando, e respondem que não acharam meu filho. -
Com olhos marejados de lágrimas, a mãe sussurrou:
- Queira Deus que isso termine logo. -