Quando um grupo de norte-americanos, furiosos com o que consideraram um movimento de homofobia fomentado pelo governo russo, iniciou um boicote à vodca Stolichnaya, há poucos meses, contou com o apoio de Kaspars Zalitis, defensor dos direitos dos gays na Letônia, país do Báltico que teve uma experiência longa e dolorosa com a opressão da Rússia às minorias.
Só que aí veio a surpresa: ele descobriu que a Stolichnaya não é feita na Rússia, mas sim em sua cidade, a capital da Letônia, que se livrou do jugo russo há mais de 20 anos.
- Sempre achei que fosse russa - disse ele, perplexo.
Há tempos o boicote é usado como arma eficiente de protesto, mas os esforços dos norte-americanos para forçar o presidente da Rússia, o abstêmio Vladimir Putin, a revogar a nova lei que criminaliza a "propaganda homossexual" simplesmente jogando vodca fora, já é considerado por muitos como o típico exemplo da boa intenção que deu errado.
- Acharam que a Stoli seria um alvo fácil - diz Stuart Milk, ativista gay e sobrinho de Harvey Milk, defensor pioneiro dos direitos homossexuais assassinado na Califórnia.
Promovido por gays influentes como o escritor Dan Savage e o grupo Queer Nation, o boicote a vodca foi "bem intencionado", afirma Milk que, baseado em trabalhos anteriores de sua organização, a Fundação Harvey Milk, no Báltico, já sabia que Stolichnaya contava com uma grande mão de obra letã - e decidiu que boicotar a bebida seria "um engano", pois só prejudicaria uma empresa e um país que não estão alinhados com o Kremlin.
A própria Stolichnaya só reforçou a confusão, há décadas se promovendo como "vodca russa" e chegando ao ponto de se proclamar "a vodca de todas as vodcas da terra da vodca" na campanha publicitária de 2006. A conexão russa mais tarde sumiu, com a alteração dos rótulos em 2010 onde se lia simplesmente "vodca premium", mas aí a conexão com a Rússia já estava firmemente estabelecida.
A exata nacionalidade da bebida, como a de muitas marcas globais, é difícil definir. Durante um tempo foi fabricada na Rússia e engarrafada em Riga, mas, nos últimos anos, passou também a ser filtrada e misturada na Letônia, cuja água é usada na sua produção - mas o ingrediente principal, o álcool destilado a partir de grãos, é russo. Ah, e as garrafas são da Polônia e Estônia e as tampas, da Itália.
Todas as 100 mil garrafas produzidas por dia para venda nos EUA e no resto do mundo, exceto na Rússia, saem de uma fábrica em Riga administrada pela Latvijas Balzams, empresa centenária considerada uma das maiores empregadoras e pagadoras de impostos do país.
O principal dono, Yury Shefler, nasceu e foi criado na Rússia, mas acusado de roubar o nome Stolichnaya durante o caos dos anos 90, está arriscado a ser preso em sua terra natal, onde não pisa há mais de 10 anos.
A companhia que controla a marca, o Grupo SPI de Luxemburgo, também é de Shefler - que se recusou a conceder entrevista para falar sobre o boicote ao seu produto mais famoso - e montou uma forte campanha pública para mostrar que não é russa, não compartilha a visão do Kremlin sobre a homossexualidade e que é "amiga e defensora ardorosa" dos grupos LGBT.
A Stolichnaya, diz o CEO Val Mendeleev, tem a mesma relação com a Rússia que o Google, cujo cofundador, Sergei Brin, nasceu em Moscou.
- O pessoal diz que a Stoli é de um russo rico, mas quer mais rico que o Sergei Brin? - diz ele.
O grupo, segundo ele, não está "tentando esconder" suas raízes russas - a fórmula da Stolichnaya, os ingredientes básicos e o nome, o que significa capital - mas quer deixar bem claro que não é aliado do Kremlin e que ninguém vai prejudicar a Rússia ao boicotar a Stoli.
De qualquer forma, a fábrica da Stolichnaya em Riga afirma que o negócio, do qual 60% fica nos EUA, ainda não foi afetado pelo boicote apesar do fato de vários bares de Nova Iorque a São Francisco terem começado a tirar a bebida das prateleiras. Pode demorar várias semanas para que o colapso nas vendas atinja a produção.
Zalitis, por sua vez, espera que a iniciativa perca força.
- Se o boicote funcionar, quem vai perder o emprego são os letões. E aí, vão pôr a culpa em quem? No Putin? Não, vão dizer que a responsabilidade é dos gays - afirma Zalitis, que escreveu uma carta aberta em agosto protestando contra o boicote em nome da Mozaika, único grupo ativista gay da Letônia.
Gays e lésbicas enfrentam discriminação não só na Rússia, mas em toda a Europa Oriental e Central. Nacionalistas e populistas gostam de discriminá-los, assim como aos ciganos, e atacá-los verbal e muitas vezes fisicamente, acusando-os de subverterem os valores tradicionais a serviço de forças estrangeiras decadentes, notavelmente a União Europeia. O bloco exige que não só a Letônia, do qual faz parte desde 2004, como todos os outros 27 membros tenham leis proibindo todos os tipos de discriminação.
Quando a Letônia organizou sua primeira marcha do orgulho gay, em 2005, manifestantes jogaram pedras nos participantes e os políticos denunciaram o evento como uma vergonha nacional.
- A força do ódio foi assustadora - conta o anglicano Juris Calitis, ex-pastor luterano de Riga. Em 2006, Calitis ficou coberto de esterco depois de realizar uma missa para os paroquianos gays. E foi expulso da Igreja Luterana da Letônia.
Porém, ele mesmo, além de outros ativistas, admite que o clima melhorou consideravelmente.
- São as transformações inevitáveis de um lugar provinciano que ainda tenta se livrar da pecha soviética - afirma ele.
O Queer Nation, grupo que lidera o embargo a vodca, recentemente ampliou suas atividades antirrússia para focar em refrigerantes. Em agosto, fez um protesto contra a Coca-Cola em Nova York, amassando latinhas e derramando a bebida nos bueiros para protestar contra o patrocínio da empresa às Olimpíadas de Inverno 2014 na cidade russa de Sochi.
Porém, quando Zalitis, o ativista gay letão, escreveu a carta aberta sugerindo que os norte-americanos deveriam reconsiderar a campanha "Jogue a Stoli Fora", o Queer Nation retrucou de forma ácida, dizendo que o boicote era a todas as vodcas russas e "porque a Stolichnaya era russa, produzida por uma empresa russa", era um alvo mais que apropriado.
Em resposta à queixa de Zalitis de que a Stolichnaya na verdade é fabricada na Letônia, mais uma vez o grupo disparou:
- Não é uma vodca letã porque os grãos são importados da Rússia e porque o SPI tem filiais na Rússia. -
Mendeleev, CEO do SPI, reconheceu que o grupo tem, sim, um escritório em Moscou, mas só 10 funcionários trabalham ali. Ele também cultiva grãos e opera uma destilaria na região de Tambov para produzir o álcool que é enviado para a fábrica de Riga. No total, são 600 funcionários na Rússia e mais de 900 na Letônia.
Calitis, o pastor expulso da Igreja Luterana, diz não saber se o boicote a Stolichnaya vai ajudar ou atrapalhar a luta pelos direitos dos homossexuais, mas é a favor da represália às bebidas alcoólicas de qualquer nacionalidade.
Trabalhando durante anos com crianças órfãs e os pobres, ele viu de perto os danos que o álcool pode causar.
- Abençoado o dia em que a vodca for abolida aqui na Letônia - diz ele, esperançoso.