Quando os residentes desta região do extremo norte de Mianmar falam sobre as grandes mudanças dos últimos dois anos, não se referem às liberdades da mídia ou à abertura econômica que transformam outras partes do país.
Falam da radicalização do grupo étnico kachin, cujos membros habitam as encostas do Himalaia, perto das fronteiras com a China e Índia, e que se tornaram mais militantes do que em qualquer outras época em décadas, dizem os líderes kachin. Após 22 meses de luta com as tropas do governo, a postura da população endureceu, ameaçando desfazer os ganhos que o governo alcançou no sentido da democratização.
Como um termômetro das dificuldades da reconciliação nacional em Mianmar, o estado de Kachin é um lembrete sóbrio da quantidade de ódio e desconfiança que há entre a maioria birmanesa e as minorias étnicas que vivem nas regiões serranas do país. Os jovens daqui agora falam abertamente sobre a independência. As igrejas em todo o estado de Kachin estão organizando orações e jejuns de 24 horas em apoio ao Exército Para a Independência de Kachin, que vem recuando recentemente diante dos ataques da força militar de Mianmar.
"A população está comprometida com essa luta", afirmou o reverendo Samson Hkalam, líder da igreja batista em Myitkyina. Os jovens que anteriormente eram céticos em relação ao exército rebelde atualmente estão se alistando voluntariamente, declarou. "É um milagre - a inspiração e o espírito do povo."
Há dois anos, quando o Presidente Thein Sein deu início ao primeiro governo civil em Mianmar em cinco décadas, ele prometeu dar prioridade máxima à unidade nacional. Seu mandato criou uma série de acordos de cessar-fogo com grupos étnicos armados e continua tentando engajar líderes étnicos. As ações aumentaram as esperanças entre a minoria kachin de que o fim do governo militar poderia finalmente trazer a autonomia há muito almejada.
Mas três meses após Thein Sein assumir o cargo, começou a luta no estado de Kachin, encerrando um cessar-fogo de 17 anos. A causa imediata foi uma disputa do território ligado a um projeto de uma represa para uma usina hidroelétrica chinesa, mas a questão mais ampla era, e ainda é, o grau de autonomia que os kachin teriam.
A luta aumentou em dezembro, com o bombardeamento aéreo do território kachin pela força militar. O conflito criou uma onda de 90.000 refugiados e agravou as queixas de longa data dos kachin.
"Estamos zangados e tristes, e nos sentimos sozinhos", declarou Tsin Ja, professora de uma aldeia próxima a Myitkyina, a capital de Kachin. "A democracia representou um retrocesso para nós."
Tsin diz que o número de alunos em suas aulas da língua kachin aumentou bastante no último ano, já que tantos os pais quanto os filhos defendem a identidade cultural kachin.
Ela ensina o idioma kachin em uma igreja porque ele não faz parte do currículo escolar nas escolas do governo, uma grande fonte de ressentimento.
"Meus alunos dizem: 'Não vamos mais falar birmanês'", declarou. "Os jovens têm muito ódio e aspereza em relação aos birmaneses. É muito diferente de quando eu era criança."
Analistas estão divididos acerca do que a deterioração das relações entre os kachin e o governo central significa
para as medidas gerais do país na direção da democracia e da abertura econômica. Inúmeros países do sudoeste da Ásia, inclusive a vizinha Tailândia, tornaram-se prósperos apesar de conflitos étnicos ou religiosos.
Mas encerrar as batalhas com grupos minoritários foi uma condição importante para os países ocidentais suspenderem as sanções impostas ao governo militar. Os acordos de paz que o governo assinou com outros grupos são frágeis, e alguns estão se desgastando com relatos de conflitos periódicos entre os militares birmaneses e os exércitos étnicos.
O Exército Para a Independência de Kachin tem mais de 4.000 homens e o poder de perturbar a economia de uma vasta região rica em madeira, minerais e jade, especialmente usando táticas de guerrilha. Até agora, o exército de Kachin tem se engajado em um tipo de guerra de trincheira, recuando montanha a montanha na medida em que as tropas birmanesas avançam perto do quartel-general fora da cidade de Laiza.
Mas os kachin também têm uma aliança em potencial com o grupo étnico vizinho, os wa, que têm aproximadamente 20.000 soldados e armamento sofisticado. Os wa fizeram as pazes com o governo. Mas eles divulgaram uma declaração com outros grupos em janeiro expressando preocupação em relação à luta kachin e afirmando que o país iria "retroceder" se a luta não parasse. Uma guerra mais ampla que incluísse a etnia wa e outros aliados étnicos seria potencialmente debilitante para Mianmar.
"Sempre haverá tensões, nacionalismos rivais, debates sobre a discriminação e pelo menos a possibilidade de violência sectária", afirmou U Thant Myint-U, catedrático de História Birmanesa e conselheiro de Thein Sein. "Mas isso é muito diferente de ter boa parte do país sendo disputada por dezenas de milhares de homens armados, pertencentes a dezenas de milícias diferentes."
A etnia kachin compõe uma pequena parte da população, mais ou menos um milhão em um país de 55 milhões de pessoas e, como outras minorias, tem relativamente pouco em comum com a maioria birmanesa. Eles falam idiomas distintos. Os kachin são predominantemente cristãos, enquanto os birmaneses são esmagadoramente budistas. Os kachin habitam as colinas, e os birmaneses vivem nas terras baixas. Eles comemoram feriados distintos. Os kachin foram frouxamente governados pelos britânicos durante o período colonial, enquanto as áreas birmanesas foram integradas ao império britânico.
Manam Hpang, o autor de um dicionário inglês-kachin-birmanês, afirmou que os kachin têm uma sensação profunda de perseguição como cristãos em uma terra budista. Durante o governo militar, o governo construiu pagodes budistas no estado e tentou censurar a versão birmanesa da bíblia cristã, inclusive com a proibição do uso da palavra birmanesa para "Provérbios" no texto, porque era a mesma palavra usada nos textos budistas.
"Temos educações distintas, culturas distintas - somos incompatíveis", Manam declarou. "Não temos ligação com essas pessoas. Os kachin perceberam que devemos ter a independência. Sem ela, seremos devorados."
The New York Times
Abismo étnico mantém a união fora do alcance em Mianmar
Radicalização do grupo étnico kachin torna difícil a reconciliação nacional no país
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