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Alinhados sobre um flamante comboio militar, soldados franceses sorriem à multidão na estrada que leva de Bamako, capital do Mali, ao Norte. Mostram-se orgulhosos, de pé em seus veículos e com óculos escuros espelhados, saudando os malineses que lhes acenam dos dois lados da rodovia.
Na sexta-feira, suas tropas tinham acabado de libertar Konna de uma frente de radicais de diversos grupos e cuja ocupação precipitou a operação militar Serval, liderada solitariamente pela França junto ao exército malinês.
- Que bom que vieram - comenta um vendedor que, embaixo de uma cabana de palha, serve café e pedaços de torta aos clientes.
A alegria, porém, desaparece depois do efêmero desfile da vitória, e o medo regressa aos olhos redondos e sábios de Debé, um ancião enrugado sentado junto à venda.
- Já estão ali - diz a um homem sentado a seu lado, enquanto gira a cabeça com temor em direção ao norte, de onde vem a ameaça de uma frente de combatentes radicais islâmicos.
Os rebeldes pretendem tomar o poder e instaurar um califado islâmico às portas da Europa, com a Sharia (código legal islâmico) como fonte de jurisprudência, ainda que interpretada segundo o mais duro estilo talibã.
Na sexta-feira, o Ministério da Defesa do Mali anunciou a retomada de Diabali, distante cerca de 400 quilômetros de Bamako. A França não confirmou a informação. A localidade havia sido ocupada na quarta-feira por milhares de rebeldes que combatiam corpo a corpo com as forças especiais francesas. A operação começou com bombardeios aéreos, que depois se tornaram impossíveis porque as milícias rebeldes haviam tomado as casas dos habitantes e os transformado em escudos humanos. A luta acontecia por terra, rua a rua.
- Eu não posso voltar a minha casa, porque quando essa gente chegou cortou a eletricidade, são muito violentos e perigosos - conta Mamadou, um habitante de Timbuktu, histórica cidade do norte conquistada no ano passado pelos radicais.
Bamako está em alerta máximo diante da aproximação dos guerrilheiros, que chegaram na quinta-feira a Banamba, a 140 quilômetros da capital e com presença de soldados malineses.
- Por isso, estou 100% de acordo com a operação dos franceses. A culpa é de nosso governo que deixou as coisas chegarem onde estão. Não estou de acordo é com a instauração da Sharia deles, que é a sua própria interpretação do Islã, que não é a nossa - lamenta-se Triaoré Biabouba, um agente de segurança do hotel Laico L'amitié, de Bamako.
Passagem pela Ásia
Os malineses já sabem o que acontecerá se os rebeldes conquistarem Bamako. O Tribunal Penal Internacional abriu uma investigação de crimes de guerra cometidos na região norte do Mali desde janeiro de 2012, onde "diversos grupos armados semearam o terror e infligiram sofrimentos à população por todo um leque de atos de extrema violência". Em localidades como Gao ou Timbuktu, cortam-se mãos por roubo, lapida-se por adultério, há flagelação pública e até proibição de escutar música e consumir álcool, leis que lembram os anos mais obscuros do regime talibã afegão.
De fato, alguns dos que lutam nesta guerra contra os franceses estiveram no Afeganistão. São os argelinos chamados "afegãos", curtidos combatentes que estiveram lutando como mujaidim (guerreiros islâmicos) contra os soviéticos e que voltaram para casa nos anos 1990 para continuar com a violência nas fileiras do Grupo Salafista para a Pregação e o Combate (GSOC), transformado mais tarde em Al-Qaeda no Magreb Islâmico (AQMI). Eles encontraram refúgio no norte do Mali. Somaram-se Al Muthalimin, a brigada de Mokhtar Belmokhtar, ex-integrante da AQMI e conhecido como Sr. Marlboro ou Sheik Torto, responsável pelo sequestro massivo na planta de gás argelina de In Amenas.
Deserto é abrigo para fora da lei
A frente islâmica que controla o norte do Mali tem a participação dos tuaregs (etnia nômade do norte da África) do Movimento Nacional de Libertação Azawad (MNLA).
A eles, paradoxalmente, uniram-se os combatentes refugiados na Líbia nos anos 1990 depois de se insurgir contra Bamako, e que terminaram apoiando o regime de Muamar Kadafi durante a Primavera Árabe. Esses últimos detêm um arsenal extraordinário que lhes permitiu se aventurar em direção ao sul e tentar tomar a capital, segundo o general francês Vincent Desportes, para quem o Mali está "diante da Segunda Guerra da Líbia".
Completam a frente islâmica outros grupos, como o movimento armado islâmico Ansar Dine (Partidários do Islã), que têm o regime talibã afegão como exemplo a seguir, e outros jihadistas recém-chegados de países africanos e inclusive do Oriente Médio.
Esse conglomerado de grupos radicais islâmicos ganhou força na última década graças ao chamado "gangsterrorismo", participando em atividades como narcotráfico, tráfico de armas e de pessoas, recolhendo grandes somas com os suculentos resgates pagos pelos sequestros de estrangeiros. Segundo números fornecidos por Soumeylou Boubeye Maïga, presidente do Observatório do Terrorismo no Sahel em 2010, entre 2003 e 2010 esses grupos recolheram até 12 milhões de euros em resgates, convertendo essa atividade em um negócio lucrativo para a AQMI.
Há anos que o deserto constitui um abrigo perfeito, um buraco negro de 4 milhões de quilômetros quadrados que se converteu em refúgio não apenas de terroristas, mas também de meliantes, narcotraficantes de cocaína latino-americana, traficantes de armas, clandestinos subsaarianos ou contrabandistas. Um território onde, segundo Maïga, os terroristas pretendem criar um "Tora Bora" (refúgio de talibãs entre o Afeganistão e o Paquistão) às portas da Europa.
O enorme deserto está catalogado como uma das zonas mais hostis e duras do mundo, com devastadoras e cada vez mais frequentes secas, índices de pobreza extrema (quatro países do Sahel estão entre os 10 IDH mais baixos do planeta) e uma fome que afeta mais de 10 milhões de pessoas, segundo a organização não-governamental Médicos sem Fronteiras. Atravessa uma dezena de Estados da Mauritânia à Somália, muitos deles falidos e com violência, fronteiras difusas e população nômade extremamente difícil de controlar. O norte do Mali, de fato, converteu-se no porto seguro ideal. O Deserto do Saara cobre 60% desse território e tem extensão similar à da França.
Miséria local incentivou adesão a grupos rebeldes
A pobreza fez com que alguns recrutas dos rebeldes, que contam com 1,2 mil homens, se alistassem mais por fome que por fervor religioso. Hoje, o grande temor é que a intervenção militar sirva de propaganda para jihadistas internacionais. Ainda que os franceses tenham assumido sozinhos as operações militares, os Estados Unidos têm presença militar na zona e grandes interesses nos recursos de gás e petróleo no norte da África.
Assim, pode tornar-se realidade o grande sonho de Osama bin Laden de contar, no norte da África, com uma legião de guerrilheiros prontos para atacar em qualquer momento. Nesse caso, essa guerra não fez mais que começar.