Os Estados Unidos que emergem do discurso da segunda posse do presidente Barack Obama estão mais preocupados em garantir assistência médica aos idosos e reduzir a desigualdade social do que em criar novas frentes de combate no deserto em nome da democracia. Estão mais centrados no contingente de latinos e asiáticos que miscigenam o país do que em erguer muros na fronteira com o México ou enviar helicópteros para caçar guerrilheiros na selva.
Em 18 minutos e 53 segundos, praticamente sem afrescos poéticos, Obama expôs os inimigos do país: desigualdade, pobreza, preconceito, falta de oportunidades, destruição ambiental, violência.
- Uma década de guerra está terminando agora. A recuperação econômica já começou - foi uma das frases do 44º presidente americano no Capitólio, diante de um terço do público que assistira, quatro anos atrás, a um Obama evasivo e preocupado em reverter os estragos da Era Bush.
Ou seja, nesse clima de pós-guerra - no Iraque, no Afeganistão -, as chances são inúmeras para o desenvolvimento do país, mas não se, em suas palavras, "um contingente crescente de cidadãos mal consegue sobreviver".
A desigualdade social ganha espaço como problema número 1, com 15% da população vivendo na linha da pobreza ou abaixo dela - conforme classificação adotada pelos EUA e que difere da de nações pobres - e uma classe média que encolhe e perde patrimônio. Após a grande depressão iniciada em 2008, o padrão de vida do americano médio caiu 28%, de acordo com estudos do Pew Research Center, apagando duas décadas de ganhos. E cerca de 2,6 milhões de pessoas entraram na faixa de pobreza só em 2010.
No texto cunhado pela Casa Branca, Obama repetiu 11 vezes a palavra "povo" e falou "nós" (we, us) em 89 ocasiões.
- Ficou claro que, ao frisar tantas vezes "nós, o povo", ele se endereçava indiretamente ao Congresso, apostando na capacidade de pressão popular. Obama quis deixar claro que defende uma série de políticas sociais e reformas que podem ser barradas pela oposição - observa a professora Georgia Kernell, do Departamento de Ciência Política da Northwestern University, em Illinois.
O que Obama fez foi captar mudanças latentes na sociedade e que terão de ocorrer de qualquer jeito, acrescenta a pesquisadora. É uma nação que está mudando rapidamente sua visão sobre questões fundamentais que definiram os rumos políticos por gerações. Pesquisas mostraram que o apoio ao casamento gay - defendido de forma inédita por um presidente americano em sua posse - era de 30% em 2004 e passou a 51% em dezembro do ano passado. Entre os jovens de 18 a 29 anos - nicho do eleitorado do democrata -, a aprovação é de 73%. "A oposição ao casamento gay está morrendo. É coisa de gente velha", escreveu o colunista conservador George F. Will.
Apelo aos adversários
O mesmo ocorre com a imigração. A maioria dos americanos concorda que é necessário resolver o problema dos imigrantes ilegais. Em fevereiro, Obama deve enviar ao Congresso um pacote amplo de medidas direcionadas aos imigrantes. Seu alcance ainda é desconhecido, mas poderia abrir portas para registrar os 11 milhões de ilegais no país. No ano passado, Obama havia prometido apresentar o projeto de reforma abrangente sobre o assunto, não o fez e, mais tarde, afirmou ter sido essa a sua "maior falha" no primeiro mandato. Às vésperas da eleição, lançou um programa que permite aos jovens sem documentos pedir permissões temporárias de trabalho. Os hispânicos foram importantes na vitória de Obama em Estados flutuantes como Nevada, Colorado, Novo México e Virgínia, conforme pesquisas - o que acordou o Partido Republicano para esse público.
Entre os republicanos, o democrata foi criticado por ter supostamente feito um discurso apelativo destinado a dividir o partido opositor. Para o presidente, conseguir algumas dessas mudanças pode ser a diferença entre deixar ou não um legado.
Confira o discurso completo de posse do presidente Barack Obama
(Traduzido pela agência AFP)
"Vice-presidente Biden, presidente do Supremo Tribunal, membros do Congresso dos Estados Unidos, distintos convidados, concidadãos:
Toda vez que nos reunimos para empossar um presidente, somos testemunhas da força duradoura da nossa Constituição. Nós afirmamos a promessa da nossa democracia, lembramos que o que mantém esta nação unida não é a cor da nossa pele, as doutrinas da nossa fé ou a origem dos nossos nomes. O que nos torna excepcionais, o que nos faz americanos, é nossa lealdade a uma ideia, articulada em uma declaração feita mais de dois séculos atrás:
'Nós consideramos estas verdades incontestáveis, que todos os homens são criados iguais, que são dotados por seu Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade'.
Hoje, nós damos prosseguimento a uma jornada sem fim, para traduzir o significado daquelas palavras à realidade do nosso tempo. Porque a História nos diz que enquanto estas verdades forem incontestáveis, elas nunca serão auto-executáveis; que embora a liberdade seja um dom de Deus, ela precisa ser assegurada por Seu povo aqui na Terra. Os patriotas de 1776 não lutaram para substituir a tirania de um rei pelo privilégio de alguns ou pelo regime de uma multidão. Eles nos deram a República, um governo pelo e para o povo, incumbindo cada geração de manter segura a nossa doutrina fundadora.
Por mais de duzentos anos, nós o fizemos. Pelo sangue derramado pela chibata, pelo sangue derramado pela espada, aprendemos que nenhuma união fundada nos princípios da liberdade e da igualdade pode sobreviver meio-escrava ou meio-livre. Nós nos reconstruímos e prometemos seguir adiante juntos.
Juntos, nós determinamos que uma economia moderna exige estradas de ferro e rodovias para tornar mais rápidos as viagens e o comércio, escolas e universidades para treinar nossos trabalhadores.
Juntos, descobrimos que um mercado livre só prospera quando há regras para assegurar a concorrência e o jogo limpo.
Juntos, decidimos que uma grande nação precisa cuidar dos vulneráveis e proteger seu povo dos maiores riscos e infortúnios da vida.
Por tudo isto, nós nunca deixamos de lado nosso ceticismo sobre a autoridade central, nem sucumbimos à ficção de que todos os males da sociedade podem ser curados pelo governo sozinho. Nossa celebração da iniciativa e do empreendedorismo, nossa insistência no trabalho duro e na responsabilidade pessoal são constantes em nosso caráter.
Mas sempre compreendemos que quando os tempos mudam, também precisamos mudar. Que a fidelidade a nossos princípios fundadores exige novas respostas para novos desafios. Que preservar nossas liberdades individuais, enfim, exige ação coletiva.
Pois o povo americano não pode mais atender às demandas do mundo de hoje agindo sozinho, assim como não teria conseguido enfrentar as forças do fascismo ou do comunismo armados com mosquetes e organizados em milícias. Ninguém consegue, sozinho, treinar todos os professores de matemática e ciências necessários para preparar nossas crianças para o futuro ou construir as estradas, redes e laboratórios de pesquisa que trarão novos trabalhos e negócios para nossas fronteiras. Agora, mais do que nunca, nós precisamos fazer estas coisas juntos, como uma nação e um povo.
Esta geração de americanos tem sido testada por crises que fortaleceram nossa determinação e provaram nossa resiliência. Uma década de guerras está terminando. A recuperação econômica começou. As possibilidades da América são inesgotáveis, pois nós possuímos todas as qualidades que este mundo sem fronteiras exige: juventude e dinamismo, diversidade e abertura, uma capacidade sem fim de correr riscos e o dom de se reinventar.
Meus compatriotas americanos, somos feitos para este momento, e vamos todos aproveitá-lo, desde que o façamos juntos.
Porque nós, o povo, compreendemos que nosso país não pode ter êxito quando uma pequena minoria se sai bem e uma crescente maioria mal consegue sobreviver. Nós acreditamos que a prosperidade da América precisa se basear nos ombros largos de uma classe média ascendente. Sabemos que a América prospera quando cada pessoa encontra independência e orgulho em seu trabalho; quando os salários de um trabalho honesto libertam as famílias da linha da miséria. Somos fiéis a nosso legado quando uma menininha, nascida na mais assoladora pobreza, sabe que ela terá as mesmas chances de progredir do que qualquer outro porque ela é americana, é livre e é igual, não só perante os olhos de Deus, mas diante dos nossos.
Nós entendemos que nossos programas desgastados são inadequados às necessidades do nosso tempo. Precisamos aproveitar as novas ideias e tecnologias para transformar nosso governo, reformular nosso código fiscal, reformar nossas escolas, dar poder aos nossos cidadãos com as capacidades de que necessitam para trabalhar mais, aprender mais, chegar mais alto. Mas embora os meios mudem, nosso propósito permanecerá: uma nação que recompensa o esforço e a determinação de cada americano. É isso que este momento exige. É isto que dará significado real às nossas crenças.
Nós, o povo, ainda acreditamos que cada cidadão merece o mínimo necessário de segurança e dignidade. Precisamos fazer escolhas difíceis para reduzir o custo dos cuidados médicos e o tamanho do nosso déficit. Mas rejeitamos a crença de que a América precisa escolher entre cuidar da geração que construiu este país e investir na geração que construirá seu futuro. Pois nós lembramos das lições do nosso passado, quando se passavam os últimos anos de vida na pobreza, e pais de crianças com deficiências não tinham para quem se voltar. Nós não acreditamos que neste país a liberdade seja reservada para os afortunados, ou a felicidade para alguns poucos. Nós reconhecemos que não importa a responsabilidade com que vivemos nossas vidas, cada um de nós pode enfrentar, a qualquer momento, a perda de um emprego, uma doença repentina, ou ter a casa varrida por uma terrível tempestade. Os compromissos que fazemos uns com os outros, através do Medicare e do Medicaid, da seguridade social, são coisas que não enfraquecem nossa iniciativa. Elas nos fortalecem. Elas nos transformam em uma nação de pessoas que aproveitam as oportunidades, elas nos libertam para assumir os riscos que tornam este país grande.
Nós, o povo, ainda acreditamos que nossas obrigações como americanos não são apenas conosco, mas com toda a posteridade. Nós vamos responder à ameaça das mudanças climáticas, sabendo que se fracassarmos, estaremos traindo nossos filhos e as gerações futuras. Alguns ainda podem negar o julgamento irrefutável da ciência, mas ninguém pode evitar o impacto devastador de grandes incêndios, de secas incapacitantes, e de tempestades mais poderosas. O caminho rumo a fontes sustentáveis de energia será longo e, às vezes, tortuoso. Mas a América não pode evitar esta transição, nós precisamos liderá-la. Não podemos ceder a outras nações a tecnologia que gerará novos empregos e novas indústrias, precisamos reivindicá-la. É assim que manteremos nossa vitalidade econômica e nosso tesouro nacional: nossas florestas e cursos d'água; nossas terras cultiváveis e picos nevados. É assim que preservaremos nosso planeta, deixado aos nossos cuidados por Deus. É isto que vai dar sentido às crenças que nossos patriarcas declararam.
Nós, o povo, ainda acreditamos na segurança permanente e na paz duradoura que não necessitam de uma guerra. Nossos bravos homens e mulheres de farda, forjados pelas chamas da batalha, são incomparáveis em destreza e coragem. Nossos cidadãos, marcados pela memória daqueles que perdemos, sabem muito bem o preço pago pela liberdade. A consciência de seu sacrifício nos manterá para sempre vigilantes contra aqueles que poderiam nos fazer mal. Mas somos também herdeiros daqueles que venceram a paz e não apenas a guerra, quem transformou os inimigos nos mais seguros amigos, e temos também que carregar conosco essas lições neste tempo.
Vamos defender nosso povo e nossos valores através da força de nossos braços e do Estado de Direito. Vamos mostrar a coragem de tentar e resolver nossas diferenças com as outras nações pacificamente - não porque sejamos ingênuos quanto aos perigos que enfrentamos, mas porque o compromisso pode levantar a mais duradoura desconfiança e temor. Os Estados Unidos permanecerão sendo a âncora de fortes alianças em cada canto do globo: e vamos renovar aquelas instituições que estendem a nossa capacidade de administrar crises internacionais, pois ninguém tem a maior participação em um mundo pacífico do que a mais poderosa nação. Vamos apoiar nossa democracia da Ásia à África; das Américas ao Oriente Médio, porque nossos interesses e nossa consciência nos compele a agir em nome daqueles que anseiam por liberdade. E nós devemos ser uma fonte de esperança para os pobres, doentes, marginalizados, vítimas de preconceito - e não por uma mera caridade, mas porque a paz em nossos tempos requer um avanço constante destes princípios que nossas crenças descrevem: tolerância e oportunidade; dignidade humana e justiça.
Nós, o povo, declaramos hoje que a mais evidente das verdades - que todos nós fomos criados iguais - é a estrela que continua a nos guiar; tal como guiou nossos antepassados através de Seneca Falls, Selma e Stonewall; assim como guiou todos os nossos homens e mulheres, celebrados e não celebrados, quem deixou pegadas ao longo deste grande percurso para ouvir um pregador dizer que não podemos caminhar sozinhos; para ouvir um rei proclamar que nossa liberdade individual é intrinsecamente ligada à liberdade de cada alma na Terra.
É agora a tarefa de nossa geração levar adiante o que aqueles pioneiros iniciaram. Nossa jornada não estará completa até que nossas mulheres, nossas mães e filhas possam viver de forma igualitária equivalente aos seus esforços. Nossa jornada não estará completa até que nossos irmãos e irmãs gays sejam tratados como qualquer outro perante a lei -, assim, se somos verdadeiramente criados iguais, então certamente o amor que nos comprometemos uns com os outros deve ser igual também. Nossa jornada não estará completa até o momento em que nenhum cidadão seja forçado a esperar por horas para exercer seu direito de votar. Nossa jornada não estará completa até encontrarmos um caminho melhor para os esforçados e esperançosos imigrantes que ainda veem os Estados Unidos como uma terra de oportunidade, até que nossos jovens e brilhantes estudantes e engenheiros sejam inseridos na nossa força de trabalho ao invés de serem expulsos de nosso país. Nossa jornada não estará completa até que nossas crianças, das ruas de Detroit aos Montes Apalaches e nas pacatas ruas de Newtown, souberem que são cuidadas, amadas e sempre estarão seguras de qualquer perigo.
Esta é a missão de nossa geração - de tornar reais estas palavras, estes direitos, estes valores - de Vida, Liberdade e da Busca pela Felicidade - para cada americano.
Sermos fiéis a estes escritos originais não nos obriga a concordarmos em cada aspecto da vida. Não significa que todos nós definimos liberdade da mesma forma, ou seguimos o mesmo caminho para a felicidade. O Progresso não nos obriga a resolver séculos - longos debates sobre o papel do governo, mas nos exige que tomemos decisões em nosso tempo.
Por ora, as decisões recaem sobre nós, e não podemos nos dar ao luxo de atrasar. Não podemos confundir absolutismo com um princípio, ou substituir o espetáculo como política, ou tratar xingamentos como se fosse um debate razoável.
Temos que agir, sabendo que nosso trabalho será imperfeito. Nós temos que agir, sabendo que as vitórias de hoje serão apenas parciais, e que ficará a cargo daqueles que estarão aqui por quatro anos, e quarenta anos, e quatrocentos anos para avançar o espírito atemporal uma vez já conferido a nós em um salão vazio da Filadélfia.
Meus compatriotas americanos, o juramento que fiz hoje diante de vocês, como aqueles recitados por outros que servem neste Capitólio, foi um juramento a Deus e ao país, e não a um partido ou facção - e nós devemos fielmente executar a nossa promessa pelo tempo que durar nosso serviço. Mas estas palavras que pronunciei hoje não são diferente daquelas do juramento feito a cada vez que um soldado se alista para o serviço, ou um imigrante realiza seu sonho. Meu juramento não é tão diferente da promessa que todos nós fazemos à bandeira que tremula e que enche nossos corações de orgulho.
Essas são as palavras de cidadãos, e representam nossa maior esperança.
Você e eu, como cidadãos, temos o poder de trilhar o rumo deste país.
Você e eu, como cidadãos, temos a obrigação de moldar os debates de nosso tempo - não somente com os votos que conseguimos, mas com as vozes que levantamos em defesa dos mais antigos valores e ideais duradouros.
Deixe que cada um de nós abrace, com um dever solene e uma incrível alegria o que é nosso direito de nascimento. Com um esforço e um propósito comum, com paixão e dedicação, vamos atender ao chamado da história, e levar para um futuro incerto a preciosa luz da liberdade.
Obrigado a todos, que Deus Abençoe todos vocês, e que Ele sempre abençoe os Estados Unidos da América."