![Damon Winter / NYTNS Damon Winter / NYTNS](http://www.rbsdirect.com.br/imagesrc/13376711.jpg?w=700)
Abidjan, Costa do Marfim - Salif Diabagate, artista da capital financeira da nação, está ao lado de uma pilha de entulho ao lado do estúdio-bangalô. Ele pega um pedaço de pano pendurado para o lado de fora, dá um tranco e o vai puxando até soltar uma tela pintada com símbolos e palavras. Ela a estica, amassada e suja, no chão.
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- Fiz para parecer a camisa tradicional do caçador, com amuletos e talismãs - ele afirma, apontando os pequenos bolsos costurados na superfície da pintura. - Os soldados devem ter pensado que fosse perigoso. Magia negra.
Os soldados eram de tropas governamentais que, um ano atrás, invadiram o estúdio e acamparam nele quando a violência apanhou Abidjan durante o clímax de uma década de guerra civil. Diabagate, agora com 40 e poucos anos, estava numa exibição em Berlim quando "a crise", como é descrita, eclodiu. Ele só conseguiu voltar depois que terminou. Então, o estrago estava feito. Os soldados queimaram as esculturas e deixaram as pinturas na chuva.
A tela poderia ser salva? Provavelmente não. Ele teria de se concentrar em produzir novas obras, embora ninguém estivesse comprando.
- Arte é o que você abandona, se estiver tentando se agarrar ao dinheiro.
Até mesmo durante momentos de estabilidade a vida pode ser complicada para os artistas na África Ocidental. Porém, cidades como Abidjan, Dakar, no Senegal, e Bamako, no Mali, estão saturadas de arte. Murais cobrem paredes públicas e as laterais dos ônibus. Retratos de beldades cheias de vida, santos sufistas e heróis culturais (Che Guevara, Mandela, Obama, Madonna) estão à venda em todo lugar.
Contudo, os elementos que, no Ocidente, perfazem uma cena contemporânea saudável - galerias, museus, colecionadores, jornais, críticos e públicos - estão em falta. E o grau de isolamento dos artistas em relação às pessoas por todo o continente e dos desenvolvimentos artísticos em âmbito mundial é quase inconcebível para um ocidental urbano.
Não obstante e por causa desse isolamento, as redes de artistas locais se aglutinam ocasionalmente formando coletivos unidos e eficientes como o Huit Facettes, de Dakar, na maioria das vezes como grupos de afinidade livres, formados por estudantes de arte e amigos. Também existem espaços alternativos, concebidos sob um modelo ocidental e muitas vezes com ajuda ocidental, como a Raw Material Company, em Dakar, Appartement 22, em Rabat, Marrocos, e Zoma Contemporary Center, em Adis Abeba, Etiópia. A Raw Material, tocada por Kuoho Koyo, curador de Camarões, abrange uma galeria, uma biblioteca repleta de catálogos estrangeiros, revistas e um café bar.
E existe um mecanismo em larga escala para artistas da África Ocidental mostrarem suas obras: as amplas e típicas bienais de arte. Financiadas por dinheiro público - a maior parte vem da França, que ainda exerce uma influência cultural poderosa sobre as ex-colônias - tais mostras visam a captar atenção global.
Ainda assim, até mesmo nesses fóruns ostensivamente internacionais a África e seus artistas permanecem extraordinariamente separados. Os dois eventos mais antigos desse tipo ainda em funcionamento na África, Dak'Art, no Senegal, e a Bienal de Fotografia em Bamako, expõem basicamente artistas deste continente. Em parte por esse motivo, o público continua pequeno. De fora, essas mostras são vistas como provincianas; em casa, como eventos para estrangeiros.
E quer sejam fortes ou fracas - a bienal de 2011 de Bamako, no semestre passado, foi forte, visualmente ambiciosa e cosmopolita no raciocínio - elas sugerem questões básicas sobre a arte contemporânea daqui e de todo o continente.
O que, por exemplo, quer dizer "africana" em arte contemporânea africana, se é que significa alguma coisa? É africana enquanto marca, vantagem ou peso morto? Será que a arte deve sinalizar seu africanismo - por exemplo, fazer referência a temas ou formas tradicionais africanas - para ter sucesso num mercado global amante do exótico? Da mesma forma, as versões atualizadas das formas africanas tradicionais - como a cerâmica ou as performances - podem ser apresentadas como contemporâneas sem perder, aos olhos ocidentais, a autenticidade? E como a África do século XXI, por si mesma, pode se juntar ao mundo maior?
No Senegal, logo após a era pós-colonial, a arte era uma base da estratégia de desenvolvimento nacional. Sob o rótulo da Negritude, Leopold Sedar Senghor, o poeta instruído em Paris que se tornou o primeiro presidente do país em 1960, promoveu uma estética misturando a cultura africana, a consciência racial negra, modernismo europeu e incorporou a quase abstração dos motivos tribais. Senghor atuou em prol das carreiras dos artistas da Negritude em casa e no exterior.
Contudo, depois que ele deixou o cargo em 1980, o apoio estatal terminou. Brotaram as tendências da arte resistente. Os críticos chamaram a Negritude de neocolonialista em seu efeito, uma ferramenta criada para enaltecer um líder e impedir que a arte africana se integrasse internacionalmente. Muitos artistas jovens não suportam a última encarnação da Negritude, a Afrocentricidade, considerada constritiva e retrógada.
Caminhe pelas ruas de Dakar, Abidjan ou Bamako e sua primeira impressão é de vitalidade escancarada: de atividades diárias sem pressa, constantes, mas raramente caóticas. Faça uma pergunta e provavelmente se verá numa conversação veloz, que muitas vezes abordará, de forma volúvel, políticos locais e nacionais.
Tal vitalidade transpareceu na recente bienal de fotografia de Bamako, que aconteceu bem antes do recente golpe militar e das incursões de rebeldes separatistas. Tendo como subtítulo "por um mundo sustentável", ela foi uma mostra intensamente focada em tópicos africanos. Várias das imagens mais vívidas eram de pesadelos ecológicos do progresso pela África Ocidental. Uma seção norte-africana separada documentou os inebriantes primeiros dias da Primavera Árabe. As fotografias deixaram claro que ninguém está mais alerta aos problemas e promessas do continente do que os próprios africanos.
A bienal de 2011 foi matizada, levando o visitante de revolucionários cibernéticos em Túnis a depósitos de lixo eletrônico em Acra, capital de Gana, e a fantasias sobre a África do futuro e do passado. A exibição seria impressionante em qualquer lugar. Em Bamako - enorme distrito horizontal e empobrecido de uma cidade no rio Níger - ela parecia a um só tempo perfeita e completamente anômala, espalhada por meia dúzia de endereços e, também, pelas ruas, na forma de cartazes.
Os artistas, vindos para a abertura conheceram ao menos alguns curadores, colecionadores e colegas africanos os quais, de outra forma, nunca teriam encontrado. Contudo, a bienal em si não recebeu muito público; os primeiros relatos de ataques terroristas no norte do Mali estavam começando a afastar os viajantes.
Entretanto, com um desdobramento da exibição a ser aberto em Paris, as fronteiras da África parecem estar se expandindo. O astral estava animado. E, também, Abidjan. Em dezembro, seu horizonte de arranha-céus se incendiou com as luzes natalinas. As eleições parlamentares inquietantes transcorreram sem sobressaltos. As pessoas especulavam que a cidade logo voltaria a ser uma metrópole ao estilo francês, com galerias e butiques, como antes da crise.
Contudo, os sinais da destruição permaneciam em prédios queimados e muros esburacados de bala. E existe prova de que o pior inimigo da arte africana é a própria África. O Museu das Civilizações da Costa do Marfim, próximo do centro da cidade, está fechado, aparentemente para fazer inventário, pois foi duramente saqueado durante a crise. Em determinado momento, a maior ala de exposição estava completamente vazia, exceto por algumas máscaras esculpidas sobre caixas para armazenamento e uma mixórdia de esculturas de Christian Lattier pelo chão.
Lattier foi o maior artista da Costa do Marfim do século XX. Nascido em 1925, ele estudou em Paris, onde rompeu com a prática acadêmica francesa de fazer moldes de gesso e começou a tecer figuras com fio de cobre, técnica usada pela arte tradicional africana.
Depois da independência, ele passou a residir em Abidjan, onde lecionou até a morte, em 1978. Desligado de qualquer movimento ou estilo ocidental e subestimado no país natal enquanto vivo, ele era um homem de conflitos, culturais e pessoais. A desordem é perceptível nas esculturas, feitas com sacos para arroz de cânhamo transformados em cordas e estas, por sua vez, enroladas em torno de armaduras, animais fantásticos, crucifixos e alusões sardônicas às tradicionais máscaras africanas - ou melhor, às alusões de Picasso a tais máscaras.
Mais tarde, Lattier se voltou às esculturas públicas; a mais conhecida é um relevo gigante chamado "As Três Eras da Costa do Marfim", para o aeroporto internacional de Abidjan. Quando o aeroporto foi reformado em 2000, o relevo foi removido e transportado. Durante anos aquele emaranhado de corda puída e metal enferrujado jazeu sobre num gramado ao lado de um prédio governamental, o Palácio da Cultura. (Recentemente, ele foi levado para a Biblioteca Nacional.) Periodicamente, Salif Diabagate leva visitantes interessados em vê-lo.
Durante uma visita no outono, ele examinou os restos, procurando cupins e removeu uma calça deixada sobre a armação. Astro de um elevado momento cultural quase esquecido na África, Lattier é seu herói. Ele se lembra de ter visto "As Três Eras da Costa do Marfim" no aeroporto quando era criança: "Eu fiquei boquiaberto. Falaram que não havia mais ninguém que pudesse fazer aquele tipo de coisa. Assim, eu decidi ser artista".
Durante anos, ele planejou restaurar a obra, embora ninguém lhe houvesse pedido, até o governo começar a mostrar interesse meses atrás. Seu marchand em Abidjan o chama de louco, dizendo para produzir sua própria arte. Contudo, salvar a peça é algo pessoal. Tem a ver com preservar a história da arte africana, que é também sua própria história, e garantir o futuro de ambos.