Com coreografia sensual e figurino provocante, a primeira banda feminina de Mianmar ultrapassa os limites da aceitação nesse país de sociedade conservadora.
Porém, quando os seus pais telefonam para perguntar por que elas não chegaram em casa às 22h00, as cinco integrantes da banda logo voltam a ser filhas respeitosas.
- Estamos vivendo duas vidas diferentes - disse Lung Sitt Ja Moon, filha de um ministro batista, conhecida no palco como Ah Moon. - Nós fazemos o que queremos no palco e depois vamos para a casa dos nossos pais.
A banda se chama "Me N Ma Girls", uma brincadeira com "Mianmar Girls". Elas estão enfrentando pais conservadores, a censura do governo e namorados que acham ultrajante que elas subam no palco com roupas tão indecentes.
- Tentamos ao máximo ser sensuais, mas não além da conta - diz Wai Hnin Khaing, outra integrante da banda.
Mianmar, antes conhecido como Birmânia, está renascendo após anos de ditadura militar e isolamento. Há rumores de que o comitê de censura, que veta músicas, notícias e filmes, será abolido. À medida que o país se aproxima política e culturalmente da Ásia convencional, a arte sancionada pelo governo e os sarongues tradicionais, usados na altura dos calcanhares, estão sendo colocados em xeque pela perspectiva de um entretenimento, roupas e estilos de vida mais inspirados no Ocidente.
- As pessoas acham que uma garota não é normal se ela estiver usando algo muito sensual - disse Ah Moon, cujo pai, que é pastor, ainda é contra a escolha de carreira da filha. - Eles acham que ela não é uma menina séria.
As integrantes da Me N Ma Girls, todas com vinte e poucos anos, costumam chegar aos ensaios vestidas com roupas tradicionais. Os shorts de jeans e tops com os quais ensaiam atrairiam olhares de reprovação nas ruas de Yangon.
As integrantes da banda não se consideram rebeldes. Todas as cinco concluíram a graduação: Química, Zoologia, Matemática, Russo e Ciência da Computação. Elas estão explorando uma tendência da geração mais jovem de Mianmar, hoje presente especialmente nas áreas urbanas, de abraçar a cultura pop ocidental, mesmo que sob o prisma da cultura birmanesa.
A Me N Ma Girls lançou seu primeiro álbum no mês passado. Desde então, as garotas ficaram ainda mais conhecidas no país, tendo feito uma série de espetáculos em Yangon nas últimas semanas.
A banda é criação da dançarina e designer gráfica australiana Nicole May, que chegou a Mianmar há três anos e fez uma parceria com um birmanês, Moe Kyaw. Ele foi o primeiro a financiar a iniciativa.
May escolheu cinco garotas entre 120 candidatas que responderam a um anúncio para uma banda chamada Tiger Girls, que procurava atitude e carisma.
- Eu queria cinco meninas que tivessem energia e magnetismo - contou ela.
Mas as vencedoras não tinham a aparência sul-coreana que Moe Kyaw buscava, com pele clara e corpos esbeltos de manequins de vitrine de loja.
- Eu fiquei decepcionado - disse ele ao responder perguntas por e-mail. - Eu não achava que elas tinham a aparência de uma banda feminina de sucesso.
Moe Kyaw disse que inicialmente concordou por acreditar que as meninas tinham talento e a aparência não era tudo.
- Isso foi na época da Susan Boyle - disse ele, lembrando a cantora escocesa, pouco atraente, cuja apresentação em um show de talentos britânico virou mania na Internet.
Mas ele mudou de ideia. Há aproximadamente um ano, os parceiros se separaram. As garotas acompanharam May e mudaram o nome da banda para Me N Ma Girls.
A ideia de uma banda só de meninas é novidade no país, assim como o trabalho conjunto entre empresários ocidentais e músicos birmaneses, disse Heather MacLachlan, professora de Música da Universidade de Dayton e autora de um livro recente, "Burma's Pop Music Industry: Creators, Distributors, Censors" ("A Indústria da Música Pop na Birmânia: Criadores, Distribuidores, Censores").
A banda canta sobre amor, decepções afetivas e situações de encontro entre meninos e meninas que podem ser bem vistas em outras culturas pop, mas que causam irritação numa sociedade em que os filhos vivem com os pais até o casamento.
No clipe de uma música chamada "Festival", as garotas dançam numa boate e dão um mergulho em uma piscina. Elas espiam por sobre os óculos escuros enquanto cantam versos sugestivos: "Hey, you! Are you happy? You want some?" ("Ei, você! Tá feliz? Tá a fim?").
"Eu nunca vi meninas se comportarem dessa forma, nunca" escreveu MacLachlan por e-mail, referindo-se às garotas birmanesas.
Em outros países, há músicos pop que são afetados pelo abuso de drogas, pela perseguição dos paparazzi e por se envolverem em escândalos sexuais. As Me N Ma Girls têm problemas diferentes. Costuma faltar energia elétrica em um dos lugares onde elas ensaiam, e surgem goteiras no teto durante o período de chuvas. Os censores expressam várias objeções à banda: as garotas foram proibidas de usar perucas coloridas no ano passado. "Dar gorjeta" aos censores ajuda no processo.
O reconhecimento da banda (as meninas apareceram em revistas e em perfis na mídia birmanesa) ainda precisa se traduzir em sucesso financeiro.
A mãe de Wai Hnin Khaing ganha a vida vendendo salada de porco nas ruas. Cada prato que vende custa 200 kyat, cerca de 25 centavos de dólar.
Lalrin Kimi, que atende por Kimmy no palco, cresceu em um vilarejo montanhoso, próximo à fronteira com a Índia, em uma área que sofre com a fome e com uma praga de ratos que comem arroz. Ela vive com os irmãos em Yangon e ganha a vida cantando em bares e restaurantes.
Seu pai desaprovou sua decisão de se juntar à banda.
- Ele queria que eu cantasse apenas músicas gospel - diz ela.
As garotas sonham alto.
- Quero que a banda seja famosa e mundialmente reconhecida - disse Su Pyae Mhu Eain, graduada em Zoologia, conhecida como Cha Cha. - Quero que a banda chegue a Hollywood!.
As experiências pessoais de Cha Cha inspiraram uma música sobre um término de relacionamento, destacando o refrão "Você é um mentiroso". O clipe da música foi gravado em Bangkok no ano passado.
Foi a primeira viagem para fora de Mianmar que a maior parte das integrantes fez. Elas ficaram maravilhadas com o trânsito de Bangkok, a quantidade de shoppings e o anonimato de uma cidade grande.
- Eu senti que existe liberdade lá - contou Kimmy. - Nós podíamos vestir qualquer coisa. Não tínhamos que nos preocupar com as outras pessoas. Aqui, se usamos shorts, caçoam de nós.
A banda também conheceu o lado libertino de Bangkok, incluindo um show de sexo em uma região de bares de quinta categoria, conhecida como Praça Nana.
- Tem muitas coisas que nós não vemos em Mianmar - disse Kimmy. - Tem muitas prostitutas! (O show, que apresentava um número de sexo explícito, foi demais para Cha Cha. Ela correu para o banheiro feminino e vomitou.)
As meninas planejam voltar aos palcos no início deste ano, quando vão se apresentar junto com outras bandas de Mianmar para a grande comunidade de birmaneses que vive na Tailândia. Enquanto isso, elas se concentram nos ensaios, procurando manter os pais tranquilos.
Htike Htike Aung, uma integrante da banda que também faz as capas dos álbuns e outros trabalhos de arte, recebeu uma mensagem de texto de sua mãe recentemente, após um ensaio da banda ter passado da meia-noite.
"Você sabe que ainda tem pais?", dizia a mensagem, seguida por um pedido: "Ligue para mim, filhinha!".
Htike Htike Aung voltou para casa e encontrou a mãe esperando por ela com a comida na mesa.
- Ela nunca dorme antes de eu voltar - contou Htike Htike. - Eu me senti muito mal.
New York Times Service
Primeira banda de meninas de Mianmar desafia a censura e os pais
Grupo ultrapassa os limites da aceitação no país de sociedade conservadora
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