Às vezes, os jovens guerrilheiros se reúnem sob uma tamareira ao lado da piscina vazia para se divertir e dedilhar um violão. Quando chove, eles entram para jogar totó em uma sala de jogos improvisada dentro do seu local de encontro preferido, uma casa saqueada onde um dos filhos de Muamar Kadafi morava.
A casa é uma enorme cúpula de prazeres de um andar, completamente diferente de qualquer outra onde eles foram criados, localizada em um complexo de jardins bem cuidados onde os irrigadores continuam ligados, semanas depois que o antigo proprietário, Muatassim Kadafi, morreu logo após ser capturado pelos rebeldes.
A mansão fica escondida da vizinhança ao redor por muros de aço e concreto, e seus luxos incluem uma academia de ginástica de alta tecnologia e um banho turco privado, que ainda tem poças no chão úmido e um teto pontilhado por centenas de pequenas luzes, imitando o céu noturno.
- Só vendo o lugar para acreditar. Ele era filho do presidente - disse Moad Farhat, um estudante de 21 anos que se tornou rebelde, ao caminhar pelos corredores sinuosos com piso de mármore e luzes florescentes do bunker localizado sob a casa, com quartos cheios de computadores antigos e camas para os seguranças.
A queda do regime de Kadafi revelou muitos segredos de estado, alguns mais bem guardados que outros. Toda a Líbia conhecia o abismo que existia entre os luxos oferecidos ao círculo interno de Kadafi e a vida da maioria dos líbios, mas ver isso de perto é outra coisa.
Quanto aos jovens da Brigada de Mártires de Trípoli que vivem lá agora, a casa é mais do que um símbolo dessa lacuna: é uma última missão que assumiram para si mesmos.
- Nós, rebeldes, ficamos todos aqui, e se algo acontecer em algum lugar, nos deslocamos para lá - disse Yahya Warragh, de 25 anos, um estudante de engenharia da cidade de Nalut, nas montanhas ao sudoeste da capital.
- Mas tudo parou agora. Antes, capturávamos muitas pessoas que trabalharam para Kadafi e mataram pessoas, mas agora só protegemos a casa. É o que fazemos de mais importante.
Isso significa que a pesada grade de metal, hoje pintada com bandeiras rebeldes, permanece fechada para o público em geral, que, segundo Warragh e os outros, possivelmente "quebraria e roubaria coisas".
Uma equipe de zeladores da África Ocidental continua vindo para aparar a grama; esculpir os arbustos no formato de pirâmides aprumadas e folhudas; e receber um salário que os rebeldes fazem vaquinha para pagar.
- Pagamos os trabalhadores, mas ninguém nos paga - disse Warragh.
Os membros da brigada encontraram a casa no dia 25 de agosto, ao explorarem o bairro de Ben Ashour, e se envolveram em um rápido tiroteio com os seguranças, que eles afirmam terem fugido rapidamente. Quando os rebeldes voltaram para a casa três dias depois, a encontraram quase inteiramente saqueada. Os zeladores afirmaram que o filho de Kadafi havia deixado a casa havia três meses.
Como outros jovens dessa e de outras milícias, Warragh deixou de lado os estudos e a procura de um emprego por uma chance de "salvar o país", como ele mesmo disse.
Mas agora que Kadafi se foi, muitos acreditam que o trabalho das milícias acabou, criando uma questão aberta, e às vezes conflituosa, para os guerrilheiros e o governo interino, que tenta construir um novo Estado a partir das ruínas dos 42 anos de governo brutal, excêntrico e narcisista de Kadafi.
O governo interino pediu que as milícias abandonassem suas armas, mas a maioria delas se recusou a fazer isso. Seus líderes afirmam temer que um novo tirano surja em meio ao cenário de incerteza política do país, e para muitos guerrilheiros de patentes mais baixas não há qualquer motivo para deixar a vida nas milícias até que o governo ofereça algo para eles fazerem.
- Estou cansado de ficar aqui - disse Warragh, deitado em um dos sofás luxuosos ao lado da piscina vazia. Ele sonha em terminar seus estudos, arrumar um emprego e viajar pelo mundo, mas afirma que muitos da brigada desejam apenas uma vida estável.
- Nenhum dos revolucionários tem dinheiro. Existem milhões de coisas que quero do governo. Nós fizemos a revolução e criamos o governo, e agora ele precisa fazer algo por nós - explica Warragh.
Essa demanda ficou clara no final de dezembro, quando cerca de 200 ex-guerrilheiros rebeldes participaram de um protesto, sob chuva, do lado de fora do elegante escritório de vidro e aço do primeiro ministro interino da Líbia, Abdulrahim el-Keeb, um dia antes do prazo - ignorado, mais uma vez - para que os guerrilheiros ao redor de Trípoli deixassem a capital.
O governo tem se esforçado para exercer sua autoridade até mesmo nas ruas da capital, onde guerrilheiros de vários grupos diferentes exercem funções que tipicamente caberiam ao Estado, como dirigir o trânsito ou providenciar segurança no aeroporto.
A incapacidade do governo de administrar essas funções é uma prova de sua autoridade limitada, além de um ponto de reclamação de ex-rebeldes, que afirmam que o Estado está se beneficiando de sua mão de obra, sem pagar por ela.
- Trabalhamos como a polícia, mas não ganhamos nada. Estamos cansados de ficar nessas brigadas, parados, vigiando coisas o dia inteiro. Queremos empregos normais, como todo mundo - disse Tarek al-Guindy, um guerrilheiro de 25 anos, das montanhas Nafusa, que veio participar do protesto.
Oficiais líbios prometeram integrar ex-guerrilheiros rebeldes nos serviços de segurança ou criar empregos para aqueles que abandonarem suas armas e se reintegrarem à sociedade civil, mas não revelaram nenhuma informação mais específica a respeito disso.
- Sabemos que não se trata de simplesmente dizer "abandonem suas armas e voltem ao trabalho" - el-Keeb disse recentemente em uma entrevista.
Abdul-Hafidh Ghoga, porta-voz do Conselho nacional de Transição, disse que, apesar da liberação de US$ 40 bilhões em ativos estatais que estavam congelados no exterior, o governo simplesmente não teve recursos suficientes para programas que pudessem atrair guerrilheiros para cargos públicos ou atenuar seu retorno à sociedade civil. Ele disse que poderá demorar vários meses até que o dinheiro possa ser utilizado.
- Temos muitos projetos, mas não conseguimos executá-los porque não contamos com os recursos necessários - ele disse.
Enquanto isso, na mansão, os jovens guerrilheiros quicam pedrinhas sobre a água de um lago artificial, que está turva e parada porque eles não descobriram como ligar sua enorme cascata. Cadeiras de jardim estão espalhadas sobre o gramado molhado de chuva, e rosas brancas crescem ao redor.
- Muatassim vivia uma vida de luxo. Ele viveu como um cão, isolado do mundo por trás destes muros altos, aqui dentro, com todos os seus brinquedinhos - disse Farhat. Mas ele não sente inveja disso.
Mesmo assim, os homens admitem que às vezes é difícil encarar sua nova base, e a reviravolta histórica que os levou até ali, sem um certo deslumbre e assombro.
- Todo dia, preciso me lembrar de agradecer a Deus. Eles mataram Muatassim, e nós tomamos a sua casa - conta Warragh, sorrindo.
The New York Times Service
Líbia: rebeldes ocupam mansão que pertencia ao filho de Kadafi
Jovens de Trípoli encaram tomada do luxuoso complexo como a "última missão"
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