Após 20 meses de investigação, o Ministério Público Militar (MPM) deflagrou na manhã desta terça-feira (10) uma operação para desarticular suposto esquema de fraudes em licitações em 49 quartéis das Forças Armadas. A investigação apura compras públicas no valor global de R$ 25,8 milhões, envolvendo quatro empresas e dezenas de militares, entre praças e oficiais. Não há uma estimativa oficial do montante dos desvios.
Cerca de 40 agentes e delegados da Polícia Federal e militares do Exército estão cumprindo mandados de busca e apreensão em oito endereços de Uruguaiana e Alegrete. São alvos a sede das empresas Bidinha & Moresco, M. A. Moresco, J. D. dos Santos Rezes, em Uruguaiana, e da E. R. Comércio, no Alegrete. Os policiais também estão vasculhando as residências de cinco sócios das empresas, nas duas cidades.
Os investigados mantêm contratos para fornecimento de produtos alimentícios, com indícios de superfaturamento de até 500% em alguns casos. As suspeitas de fraude envolvem 30% das unidades militares instaladas no Rio Grande do Sul. Nenhum praça ou oficial foi alvo dos mandados expedidos pela Justiça Militar, tampouco qualquer unidade militar.
O esquema começou a ser descoberto em maio de 2018. Vistoriando licitações, o MPM percebeu que uma unidade militar de Jaguarão havia aderido a um contrato já fechado por um quartel de São Borja para compra de linguiças. O preço estipulado chamou atenção de promotores: R$ 56 o quilo, sendo que o valor previsto na licitação era de R$ 28, e o preço de mercado, R$ 14.
Logo em seguida, o órgão suspeitou de uma compra de uma tonelada de bife de hambúrguer pelo 25º Grupo de Artilharia de Combate (25º GAC), em Bagé. O produto teria sido entregue em 26 de março de 2019. Duas semanas depois, em 11 de abril, o MPM vistoriou o quartel e encontrou apenas 50 quilos de hambúrguer, com peso menor por unidade e marca diferente do especificado no edital.
Ao verificar outros contratos envolvendo unidades do Exército e da Marinha, o MPM identificou um procedimento padrão. As concorrências eram disputadas quase sempre por apenas três empresas, todas com o mesmo endereço, telefone, e-mail e contador: Bidinha & Moresco, M. A. Moresco e J. D. dos Santos Rezes, sediadas em Uruguaiana.
O vínculo se repetia na sociedade, com um mesmo grupo familiar. A M. A. Moresco pertence a Meireles Alves Moresco Filho, cujos pais, Meireles Alves Moresco e Kátia Lúcia Bidinha, são sócios-administradores da Bidinha & Moresco. Uma ex-empregada de Meireles, Joice Daiane dos Santos, figura como dona da J.D dos Santos Rezes.
Embora as empresas disputassem licitações entre si, o suposto conluio ficava ainda mais claro a partir das encomendas feitas pelos quartéis. Em várias ocasiões, os e-mails pedindo reposição nos estoques de comida eram direcionados a Joice, embora a empresa dela não tenha vencido a concorrência e, sim, a empresa da família Moresco.
Ao quebrar o sigilo bancário das empresas, o MPM também descobriu inúmeras transações financeiras entre elas, inclusive com depósitos de cifras superiores a R$ 100 mil. Joice, por exemplo, recebia todos os meses em sua conta-corrente R$ 4 mil da Bidinha & Moresco, "aparentando ser pagamento regular por serviços prestados, embora não seja empregada formal da empresa", diz trecho de uma das denúncias.
A partir do avanço das investigações, o MPM encontrou indícios de oito tipos de fraude, como sobrepreço e direcionamento de licitações, além de crimes como estelionato, lavagem de dinheiro, fraude contábil, formação de quadrilha, falsidade ideológica e corrupção. Por enquanto, foram instauradas duas ações penais, um procedimento investigatório criminal e três inquéritos. O objetivo do MPM é avançar a partir da coleta de documentos e da apreensão dos aparelhos celulares dos suspeitos.
Dois militares lotados no 25º GAC, o terceiro-sargento Maurício Soares Gonçalves e o primeiro-tenente Frede Santana da Silva, foram denunciados por fraude em licitação. Na mesma ação também estão denunciados Joice e Meireles. Os dois empresários foram alvo ainda de denúncia em outro processo, desta vez junto com Sidnei Paulo Radaelli, dono da E. R. Comércio. Eles teriam fraudado licitação para compra de nove toneladas de cebola para quatro quartéis, a R$ 5,73 o quilo.
"Em outubro de 2015, mês em que foi realizada a pesquisa de preço com os fornecedores, o quilo da cebola nacional era comercializada na Ceasa por R$ 1,60/kg", diz a denúncia assinada pelo promotor Soel Arpini. A ação desta terça-feira foi batizada de Operação Química porque este é um jargão usado no meio empresarial quando se entrega um produto diferente do especificado no contrato de compra.
As empresas, seus respectivos sócios, estão sendo procurados por GaúchaZH para se manifestar.
CONTRAPONTOS
O que diz Joice Daiane dos Santos
Joice afirma que os fatos relacionados à “Operação Química” não correspondem à verdade.
"Desde sua existência, a empresa sempre pautou sua conduta pelo máximo respeito ao interesse público, jamais participando de qualquer fraude de natureza licitatória. Causa estranheza, por fim, a deflagração da Operação quando a empresária já havia sido intimada para prestar esclarecimentos em inquérito policial-militar na data de amanhã, pela manhã, fazendo parecer que o espetáculo se sobrepõe ao interesse na verdade. Certo de sua inocência, e de que os fatos serão suficientemente esclarecidos com o avançar da investigação, subscreve", afirma a nota dos advogados Bruno Seligman e Mario Cipriani, que a representam.
O que dizem Meireles Alves Moresco, Kátia Lúcia Bidinha, Meireles Alves Moresco Filho
A defesa nega com veemência as falsas suposições ventiladas a partir da deflagração da “Operação Química”.
Trata-se de empresas com tradição no fornecimento de gêneros alimentícios ao Poder Público, sempre pautando sua atuação pela retidão tanto na qualidade quanto no preço das vendas feitas.
Estranhamente, na Operação, não se ouviu falar em alvos militares, transformando os citados em verdadeiros bodes expiatórios.
Ainda que os nomes dos sérios empresários tenham sido expostos, segue a confiança nas instituições e o avançar das investigações - que optou por devassar suas vidas antes mesmo de colher seus depoimentos – demonstrará sua absoluta inocência.
O que diz Sidnei Paulo Radaelli
Não quis se manifestar.
O que diz o Comando Militar do Sul
"O Comando Militar do Sul informa que tem conhecimento das investigações em questão, pois já estão sendo realizadas pelo Ministério Público Militar há algum tempo. Acrescenta ainda que, como instituição idônea e transparente, tem contribuído a fim de esclarecer e prestar as informações necessárias às investigações. A Instituição não compactua com qualquer tipo de irregularidade ou ilícito praticado por seus integrantes. Qualquer conduta, dentro da Força, que desvie do que é estabelecido legalmente será apurado e, se constatadas irregularidades, seus responsáveis responderão de acordo com a legislação em vigor."
O que diz o 3º sargento Maurício Soares Gonçalves
A reportagem ainda não conseguiu contato.
O que diz o primeiro-tenente Frede Santana da Silva
A reportagem ainda não conseguiu contato.
Valores das compras sob suspeita
- Exército - R$ 23,69 milhões
- Aeronáutica - R$ 1,679 milhão
- Marinha - R$ 430 mil
Sedes de alguns dos quartéis que mantêm contrato sob suspeita*
- Porto Alegre
- Alegrete
- Bagé
- Pelotas
- Rio Grande
- Santa Maria
- Santiago
- São Borja
- Uruguaiana
- Jaguarão
- Quaraí
*A reportagem não teve acesso a lista total das cidades e quais unidades têm contratos sob investigação em cada município.