Luto tem fim? A dor pode ser medida? Como traduzir o inominável, o sofrimento pela perda do filho – no caso, as 242 perdas no incêndio da boate Kiss? Coube a uma mineira tentar respostas para esses dilemas. Repórter da Tribuna de Minas, Daniela Arbex está lançando Todo Dia a Mesma Noite, livro sobre a tragédia de Santa Maria, que completa cinco anos no próximo dia 27/1. Ela é uma expert em dramas da vida real. Seu livro de estreia, Holocausto Brasileiro (2013), retrata o padecimento de milhares de doentes mentais internados num hospício em Minas Gerais. O seguinte, Cova 312 (2015), perfila um preso político gaúcho, morto pela ditadura militar. Nesta entrevista, diz que o livro da Kiss, que será lançado em Santa Maria na quinta-feira (25/1), está sendo o mais dolorido dos três.
"Bombeiro, tem gente, tem gente": leia um trecho do livro
Resenha: "Todo Dia a Mesma Noite" é um livro para ler chorando
O que mais chamou sua atenção no caso Kiss?
O tamanho da devastação humana que esse evento provocou. Foi um tsunami de dor cujas ondas continuam sendo sentidas. Encontrei casais que perderam o filho e que continuam se amando, mas que, desde o evento, nunca mais conseguiram se tocar. Dá para imaginar isso? Mães que se ausentaram voluntariamente da vida e, mesmo tendo outros filhos, não sabem lidar com eles, pois é como se a presença de um remetesse à ausência do outro. Entre os profissionais de saúde, a surpresa foi perceber que eles responderam com silêncio a todo trauma ao qual foram submetidos. Hoje, cinco anos depois do evento, muitos estão em tratamento psiquiátrico. Alguns deram entrevista pela primeira vez para o livro, e o mais surpreendente foi perceber que eles, durante todo esse tempo, jamais falaram entre si sobre a experiência que viveram. Um psiquiatra gaúcho (Gilson Mafacioli da Silva) acompanhou as entrevistas e se espantou com o tamanho da dor que esses profissionais carregam.
Você tem como costume mergulhar a pleno nos assuntos que possam render um livro. Como concilia isso com a atividade de mãe e, também, a de repórter De jornal?
Escrever um livro exige uma grande entrega. Já tinha viajado o país para contar histórias, mas Santa Maria exigiu esforço extra pela distância entre o Rio Grande do Sul e Minas Gerais. Como trabalho em um jornal diário em Minas, tive que viajar nos feriados ou aproveitar minhas horas extras para realizar as entrevistas no Sul e em São Paulo, onde também encontrei a família de uma vítima. No meu caso, que sou mãe de um menino de seis anos, é ainda mais difícil sair de casa. Por isso, se não tiver foco, a gente desiste no meio do caminho.
Como foram as viagens à cidade da tragédia? Quantos dias você passou em Santa Maria?
Em cada uma das cinco viagens que fiz, fiquei, em média, 12 dias. Depois, para escrever o livro, tirei uma licença de seis meses do jornal.
Como foi o processo de seleção das fotografias que o livro traz?
Resolvemos não publicar nada que já tivesse sido publicado antes. A experiente fotógrafa Marizilda Cruppe ficou quase 20 dias em Santa Maria fazendo imagens dos personagens do livro. Essas fotos foram pensadas com muita delicadeza, são parte importante do projeto do livro.
Em que ponto os temas dos teus livros se parecem? E no que eles se diferem?
Nos dois livros anteriores, procurei narrar histórias ocorridas há muitas décadas. A Kiss entrou na minha vida como um dos maiores desafios da minha carreira. Como contar uma história tão recente? Com o tempo, percebi que os temas tinham muito em comum, porque, em todos os casos, a construção da memória era necessária. O jornalista Marcelo Canellas, que assina o prefácio do Todo Dia a Mesma Noite, classifica o livro como "um inventário de afetos". É também uma mobilização contra o esquecimento.
Qual dos livros, no processo de apuração, te emocionou mais?
Todos os livros me causaram impactos profundos, mas nada mexeu tanto comigo quanto o mergulho no caso Kiss. Fiquei tão abalada que passei a ter medo de perder meu filho. Isso afetou muito a minha rotina familiar. Pela primeira vez, precisei procurar ajuda especializada.
Em dezembro, o Tribunal de Justiça gaúcho aceitou o recurso dos réus e decidiu que não haverá júri popular no caso Kiss. Ainda cabe recurso, mas a interpretação mais recente é de que não havia intenção de matar, por parte dos donos da boate e da banda que acionou o artefato incendiário. Familiares pensam o oposto, que os réus sabiam dos riscos. O que você acha?
Acho que os envolvidos assumiram o risco quando negligenciaram a segurança dos frequentadores da boate. Quando usaram gradis de maneira irregular para controlar o fluxo de entrada e saída. Quando bloquearam exaustores, lacraram as janelas e não construíram uma saída de emergência adequada.
Ninguém da prefeitura de Santa Maria foi responsabilizado pelo incêndio, embora a boate tivesse várias falhas de segurança e permissão municipal para funcionar. Como você vê isso?
Acho que a burocracia não pode ser usada como escudo para o descumprimento de deveres funcionais.
No livro, os bombeiros aparecem sobretudo pelas ações heroicas. Há algumas linhas reservadas a um grupo de bombeiros responsabilizado por conceder autorizações para o funcionamento da boate em condições precárias. Três deles foram condenados. Por que você não explorou mais essa situação?
Não vejo dessa forma. Pelo contrário: aponto toda a fragilidade dos bombeiros. Não atribuo aos que participaram do resgate uma condição de heroísmo. Apenas mostro o que eles fizeram e o que deixaram de fazer. O fato é que busquei humanizá-los, detalhar todo o medo que sentiram, todas as limitações que enfrentaram. Isso fica claro no trecho em que escrevo que quem não conseguiu chegar, sozinho, até o hall de entrada da boate, não tinha a mínima chance de ser salvo. Quando o comandante de socorro entra em choque ao ver os corpos das vítimas nos banheiros e descreve isso na sua fala, ele faz uma revelação importante sobre o seu sentimento de impotência diante da tragédia. Isso não é heroico, apenas profundamente humano. Também deixo claras a condenação dos bombeiros e a omissão do comando.
O livro mergulha profundamente na dor das famílias. Ao mesmo tempo, não explora muito a questão criminal, que está restrita a um dos 16 capítulos. Por quê?
O capítulo que trata do crime é o maior do livro. E o mais denso. Ninguém foi poupado. Só que fazer um livro inteiro sobre isso não tocaria ninguém. Aliás, um livro não seria suficiente para tratar de toda a reviravolta processual do caso Kiss. No entanto, ao mostrar os efeitos da falta de justiça na vida das famílias, a obra cumpre o seu papel de denúncia. O julgamento não cabe ao repórter.
Cezar Schirmer, que hoje é o secretário de Segurança do Rio Grande do Sul e que, na época da tragédia, era o prefeito de Santa Maria, diz que não conhecia a boate, nunca entrou lá e não teve responsabilidade nas autorizações para que ela funcionasse. O que você acha dessas colocações?
Dizer que não sabia não dá a ninguém atestado de inocência. Como gestor de Santa Maria à época dos fatos, Schirmer não tem como retirar o que aconteceu de sua biografia.
Você tentou alguma entrevista com os réus?
Várias. O advogado de Elissandro Spohr (um dos sócios da boate) já conhecia meu trabalho e respondeu prontamente ao meu contato, mas, ao final, disse que o cliente dele não participaria desse projeto. Já o advogado de Marcelo de Jesus dos Santos (integrante da banda que tocava durante a festa) foi procurado diversas vezes, por e-mail e telefone, mas não deu continuidade aos contatos. Em uma das vezes em que estive em Santa Maria, deixei vários recados no escritório dele, mas não obtive retorno.
Você entrou na Kiss?
Sim, entrei, depois de resistir muito. Foi meu pior dia em Santa Maria. Aquele prédio precisa ser demolido e dar lugar a um símbolo de respeito à memória das vítimas (a data da demolição deve ser anunciada em abril).
É possível que uma tragédia desse tamanho tivesse ocorrido sem culpa (ainda que por desleixo, omissão, incompetência) de agentes públicos?
Culpa é um substantivo feminino que trata de faltas. Aprendi que não basta não fazer o mal, é fundamental fazer o bem. Isso quer dizer que deixar de fazer também implica responsabilização.
Para quem não perdeu ninguém na Kiss, é fácil julgar o outro e mostrar-se cansado diante do luto alheio. Meu livro tem 50 mil palavras e nenhuma delas trata do termo superação. Não se supera a morte de um filho.
DANIELA ARBEX
Jornalista
Como você encontrou as famílias? Nesses cinco anos desde a tragédia, falou-se de desagregação familiar, rupturas e até tentativas de suicídio.
Comecei a contatar as famílias pela internet, depois que um radialista do meu grupo de comunicação deixou um recado no meu Facebook. Na mensagem, Marcos Moreno dizia que precisava falar comigo urgentemente. Quando cheguei ao jornal, no início de 2016, ele estava aflito. Afirmava que tinha um assunto sério para tratar. Contou ter conhecido uma enfermeira de Santa Maria. Após ouvi-la, entendeu que eu precisava contar a história da Kiss. Na hora, sorri, e respondi que Santa Maria ficava do "outro lado do mundo" e que essa história já tinha sido contada. Ele insistiu. Segurou o meu braço e repetiu: "Você não entende. Precisa contar essa história!". Essa contundência me trouxe incômodo. Resolvi, então, procurar algumas famílias pelas redes sociais. Apresentei-me e, dias depois, recebi a primeira resposta. Nela, uma mãe me disse que eles precisavam ser ouvidos. Essa resposta me tocou. Foi a partir dela que resolvi viajar para Santa Maria e saber se havia histórias não contadas. Havia muitas. Quando desembarquei em Santa Maria, já estava completamente envolvida, embora ainda não soubesse disso. E o mais incrível é que a enfermeira que Moreno conheceu na internet foi a única que se recusou a me dar entrevista. Foi gentil, me recebeu na casa dela, mas não falou uma palavra sobre a tragédia. E tudo começou por causa dela...
Algum familiar se recusou a falar com você? Como foi sua convivência com eles?
Em um primeiro momento, havia muita desconfiança em relação ao livro. Aos poucos, as famílias me entregaram o que têm de mais sublime: a memória de seus filhos. Os bastidores de Todo Dia a Mesma Noite são tão ricos quanto o próprio livro. Jamais vou esquecer o dia em que um pai que perdeu seu único filho na boate me entregou uma sacola com um presente: uma pipa que ele fez para o meu filho. Esse gesto me marcará para sempre. Também lembro o mais recente Dia das Mães, quando recebi uma linda mensagem de uma mãe que, apesar de ter perdido seu único filho, desejava o melhor para mim e meu pequeno. Foi a mensagem mais comovente que já ouvi. Como retribuir tudo isso?
Você encontrou muitas famílias amparadas em atendimento psicológico e, também, algum tipo de apoio material?
A assistência prestada pelo Acolhe (Serviço de Atenção Psicossocial às Vítimas do Desastre) e também pelo Ciava (Centro Integrado de Atendimento às Vítimas de Acidentes, entidade ligada ao Hospital Universitário de Santa Maria) é algo presente na vida das famílias e dos sobreviventes, mas há um abandono emocional desastroso para os envolvidos no evento. Para quem não perdeu ninguém na Kiss, é fácil julgar o outro e mostrar-se cansado diante do luto alheio. Meu livro tem 50 mil palavras e nenhuma delas trata do termo superação. Não se supera a morte de um filho. Exigir superação é uma total ausência de empatia com a dor do outro.
Você chegou a falar com seu filho sobre a tragédia? Como ele reagiu?
Ele tinha apenas quatro anos quando comecei a viajar para o Sul. Não podia falar para ele sobre o que houve em Santa Maria, mas ele sabe que conto a história da vida das pessoas. Hoje, aos seis anos, ele começa a sentir orgulho dessa mãe que o faz sofrer pelos períodos de ausência em casa. O que me move nessas incursões tão dolorosas é saber que, no futuro, Diego poderá conhecer uma parte da história do país e vai saber que, de alguma forma, a mãe dele ajudou a contá-la.
Cinco anos depois, ainda vale a metáfora de uma cidade inteira paralisada e um tanto perplexa em frente a um prédio tomado por fumaça?
Acho que não. Pelo contrário. Vejo uma cidade tão marcada que o desejo de virar a página é muito presente. Mas esquecer seria negar a história. Falar da Kiss não é falar de morte, mas de vida. A construção da memória é um exercício necessário de cidadania e de coragem.