Em meio a bacias, brinquedos e penicos de um bazar no centro de Porto Alegre, está o homem de voz grave e a barba longa que os anos agrisalharam e que ele costuma cofiar com expressões e gestos acolhedores. Esse mesmo sujeito passou décadas ganhando a vida atrás do balcão, mas, quando o atravessava, encarnava uma figura que se tornou conhecida América do Sul afora como defensor de pessoas fragilizadas pelo arbítrio. É como um herói dos gibis, que mantém a identidade pacata num ambiente insólito.
Jair Krischke, hoje com 77 anos, casado e pai de cinco filhos, é a cara dos direitos humanos na Porto Alegre onde nasceu – mas também em Buenos Aires, Montevidéu e Santiago, para citar algumas das capitais de países onde seu nome provoca admiração e respeito. Mais do que isso: a amplitude da sua atividade no acanhado escritório do centro de Porto Alegre compreende atender tanto o agricultor humilde que chora alguma injustiça quanto uma personalidade estrangeira que o procura pelo mesmo motivo ou um juiz italiano que tenta desvendar a Operação Condor, puxando o assunto pelos desaparecidos ítalo-argentinos e ítalo-uruguaios.
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Krischke é referência. Virou figura conhecida durante a ditadura militar, quando estendeu a mão a perseguidos pelo regime de exceção. Hoje, na democracia, mantém a atividade no prédio próximo à Esquina Democrática, na Avenida Borges de Medeiros. O Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH) foi fundado em 25 de março de 1979, mas demorou para conseguir o registro, naquela época ainda obscura de incipiente abertura do regime militar. O registro foi conseguido em 11 de agosto de 1980. Está fazendo, portanto, 36 anos.
Cinco anos atrás, quando recebeu a Comenda de Direitos Humanos Dom Hélder Câmara no Senado, foi assim que o anunciaram: "O homem que salvou 2 mil vidas". Há quem ache esse número um exagero, mas ninguém nega que sua atuação foi decisiva, realmente, para que muitas pessoas sobrevivessem.
– O Jair não faz diferença entre as pessoas, é da natureza dele. É fantástico trabalhar com ele, até pela trajetória que tem. Na verdade, é uma honra – diz o advogado e professor universitário Dani Rudnicki, que atua há 20 anos no MJDH. – Ele dá a mesma atenção a todos, e o respeito que as pessoas têm por ele no Exterior é fantástico. Ele se lembra de todos, porque sua memória é impressionante, além do carisma que cativa. Outra coisa: ele vive no mesmo apartamento de sempre, não aceita dinheiro dos outros e até deixou de entrar na vida partidária por isso. É uma pessoa incrível, que faz coisas incríveis.
Quais os defeitos no cotidiano? Rudnicki sorri e diz que uma característica de Krischke pode ser vista como qualidade ou defeito. Por ser muito ativo, tende à centralização. Mas, nas reuniões mensais do MJDH, faz questão de compartilhar tudo que ocorre.
O envolvimento de Krischke com os direitos humanos ocorreu de forma curiosa. Como ele próprio diz, "por via indireta". Sua família é anglicana, mas ele estudou numa escola católica. O avô era pastor e escrevia muito. Era conhecido, até porque Krischke não é um sobrenome comum. De cara, o pequeno Jair foi identificado como protestante e viveu a seguinte situação: em um colégio de padres, os religiosos tinham muita pena dele, dizendo que "iria para o inferno" porque professava o protestantismo.
– Diziam que eu era um menino comportado, mas que iria para o inferno. Aquilo não entrava na minha cabeça: se achavam que eu era um bom menino, por que iria para o inferno? Estou te falando de algo como 1947. E, naquele momento, o demônio era a Alemanha. Daí, eu era hostilizado também pelo sobrenome, meus colegas me chamavam de "alemão batata" e ainda que iria para o inferno – relembra Krischke.
Usando uma expressão atual, pode-se dizer que Krischke voltou-se para a defesa dos excluídos porque sofreu bullying quando era criança.
O guri ficava confuso. O tempo passou, e a confusão se transformou em vocação. No Movimento da Legalidade, quando o Rio Grande do Sul se ergueu diante da tentativa de golpe militar contra o presidente João Goulart em 1961, Jair começou a achar seu rumo na vida.
– Minha iniciação política foi feita com o Alberto Pasqualini (1901-1960), que era muito amigo da minha família. Eu era muito pequeno. No processo de redemocratização posterior à Era Vargas (passado o Estado Novo, que ocorreu entre 1937 e 1945), nos comícios, ali nas escadarias da prefeitura, eu ia com o Pasqualini. Eu tinha uns oito anos, e minha mãe, preocupada com a possibilidade de eu me perder, me fazia ficar segurando a ponta do casaco do Pasqualini. Ela dizia, "segura a ponta do casaco e não solta".
Pasqualini, o idealizador do trabalhismo, foi decisivo para o futuro de Krischke.
– Despertou-me para as questões sociais – diz ele.
O jornalista e sociólogo Marcos Rolim, também ele ativista em direitos humanos, sublinha o papel histórico de Krischke:
– É uma dessas pessoas imprescindíveis, que dedicou sua vida à luta por uma causa digna. Na época mais difícil da ditadura, ele teve a coragem de denunciar as violações e, por sua ação, no Brasil e no Cone Sul, muitas pessoas foram salvas da sanha repressiva.
Rolim, depois, faz uma ponderação:
– A luta pelos direitos humanos se tornou bem mais complexa de lá para cá e há temas emergentes que precisam de respostas que não serão encontradas nos marcos conceituais daquela época. O tema no qual Jair se especializou, de qualquer forma, não está equacionado, e a tortura e a brutalidade do Estado seguem sendo um desafio para todos nós. Quem desejar lutar contra elas encontrará em Krischke uma referência incontornável.
Fugas da Argentina e do Uruguai
O grupo de jovens que se juntou em 1961, para proteger o processo legal e preservar as instituições democráticas em risco, formou, três anos depois, uma equipe dedicada a tirar perseguidos do país, no regime militar.
– Ajudávamos, muito discretamente e de forma desorganizada, artesanal. Com o advento do AI-5 (em dezembro de 1968), as coisas se complicam. E havia uma nova leva que deveria ser retirada do país. Em novembro de 1969, numa situação terrível, houve o assassinato do (Carlos) Marighella, e os dominicanos são presos. Ali na paróquia Santa Cecília, a gente tinha um esconderijo, onde as pessoas ficavam uma noite e iam para a fronteira. Com o assassinato do Marighela, caem os dominicanos, e alguns deles chegam até a casa, que é uma rota de fuga. Continuamos trabalhando, a quantidade de pessoas que precisava deixar o país aumentava. Diziam que a gente trabalhava na clandestinidade, e eu dizia que não, que os clandestinos eram os que estavam no poder – relata Krischke sobre o final dos anos 1960.
Era a resistência democrática. O MJDH surgiu assim: o AI-5 terminava sua vigência em 31 de dezembro de 1978, mas havia ocorrido, em novembro de 1978, em Porto Alegre, o sequestro dos oposicionistas uruguaios Universindo Díaz e Lilian Celiberti, flagrado e sendo a primeira prova do intercâmbio entre repressões de países sul-americano, na chamada Operação Condor. Como o AI-5 chegava ao fim, eles resolveram "mostrar a cara". Em janeiro de 1979, iniciaram-se as reuniões semanais, com 40 ou 50 pessoas.
– Fomos fazer o registro no cartório. O titular era o doutor José (não se recorda o sobrenome). Ele disse: "Vocês querem me criar problema". Argumentamos que não havia mais problema, não havia mais AI-5. Pedimos que registrasse a certidão negativa (que dá a liberação oficial para algum registro ao assegurar a ausência de pendências judiciais), e ele voltou a dizer que se recusava. Combinei que passaria lá novamente em uma semana. Recorremos à Justiça, conseguimos uma decisão favorável, e ele não foi receptivo novamente, mas assinou o documento dizendo que se negara porque colidíamos com o estatuto dos partidos políticos (na época, havia o bipartidarismo, com a governista Arena e o PMDB como oposição aceita). Pronto, o documento com a negativa era o que precisávamos.
Bate a curiosidade: como o MJDH se sustenta?
– Somos pobres, mas orgulhosos. Nos sustentamos com os recursos dos próprios membros. Nosso estatuto diz que não podemos aceitar dinheiro público. Dinheiro governamental não entra aqui, nem municipal, nem estadual, nem federal.
E o bazar? Como dar conta dele?
– O bazar era do meu pai e possibilitava que eu me ausentasse, coisa e tal, o patrão era benevolente. Eu trabalhava com o meu pai.
Havia também, claro, projetos em que o movimento buscava recursos no Exterior.
– Houve época em que era muito difícil ter um telefone, custava caro. Uma organização do governo belga nos deu os recursos para comprarmos um telefone. A Alemanha nos ajudava muito, com a ONG Miserium. A sede era sempre alugada, de repente algum companheiro pagava o aluguel.
Com essa estrutura, Jair se tornou referência internacional. Atuou fortemente, por exemplo, para reparação dos familiares de argentinos que desapareceram no Brasil. Uma busca que continua.
A argentina Claudia Allegrini, representante desse grupo, é grata ao brasileiro:
– Jair nos ajuda muito, sempre ajudou. Devemos muito a ele.
Dessa atuação, surgem episódios curiosos. Foi Jair, pessoalmente, quem tirou a mulher do líder montonero (guerrilha argentina de esquerda) das garras da mais recente e mais cruel ditadura militar argentina (1976-1983). María Elpidia Martínez Aguero, também conhecida como La Negra, havia cumprido cinco anos de prisão e estava em liberdade condicional – tinha de ir todas as semanas ao quartel – quando houve a Guerra das Malvinas (primeiro semestre de 1982). O britânicos, então, afundaram o cruzador Belgrano. Comoção na Argentina, todos se envolveram no caso. As atenções estavam voltadas para a guerra no Atlântico Sul.
– Foi um momento especial para tirá-la da Argentina. Passamos ela para Uruguaiana, fizemos a fuga. Alugamos um aviãozinho do Salgado Filho a São Paulo e de São Paulo à Cidade do México, onde ela se encontrou com o Mario Firmenich. Era ela e o Javier, o filho dos dois. O Javier tinha cinco anos, nasceu na prisão, em péssimas condições. Ela estava pendurada, levando choque na vagina, quando deu à luz – afirma Jair.
Outro caso paradigmático, o do biofísico uruguaio Claudio Benech, em 1980. Certo dia, Jair recebeu carta da mulher do cientista, dizendo: "Meu marido estava em casa com as crianças, uns homens entraram vestidos de civis e o levaram".
– Montamos um plano de fuga. Ele estava num quartel. O plano foi construído com o irmão da Lilian Celiberti, o Ariel Celiberti, que tinha dois filhos pequenos. O Ariel começou a levá-los para a mulher do Benech, que era pediatra. Assim, não levantávamos suspeitas.
Benech, conta Krischke, fez uma análise da personalidade dos seus carcereiros, no quartel, e percebeu que eles eram fissurados por sexo. O biofísico começou a dizer que tinha saudade da mulher, que os carcereiros podiam levá-lo para passar a noite com ela, e ele faria mil posições de relações sexuais. E então o levaram na noite de Natal. Na ceia, foi feita a "sintonia fina" do plano.
– Aí, Benech pediu para estar na passagem de ano novamente com a mulher, porque ainda tinha posições sexuais a fazer. Contou as posições que havia feito com ela no Natal. Dizia que iria se jogar nela de cima do guarda-roupa, coisas assim. Os caras babavam. Levaram ele e estão esperando até hoje – conta Krischke.
A operação contou com quatro carros para possibilitar a passagem rápida e segura na fronteira com o Uruguai – começou em Montevidéu, passou por Punta del Este em um pequeno e avariado Fiat. Em Chuí, um Passat alugado e dois Fuscas terminaram a travessia cinematográfica. O jornalista Carlos Alberto Kolecza acompanhou o caso como repórter de Zero Hora. Naquele momento, definiu Porto Alegre, em razão da atuação do MJDH, como "a capital dos direitos humanos".
Krischke se emociona ainda hoje:
– Paramos para tomar um café na rodoviária. Ele disse que estava se urinando. Fomos ao banheiro, abriu a mão e mostrou uma cápsula de cianureto que iria tomar se ocorresse algo de errado. E ele chorava.
Conflito com antigos companheiros
Entre 1999 e 2003, Krischke viveu um momento complexo. A chegada ao governo gaúcho de Olívio Dutra (PT) levou-o a um embate com antigos companheiros. Houve cobranças de sua parte e algum desgaste em antigas relações. Krischke mantém críticas e mostra tristeza com alguns rompimentos. Pratos quebrados foram consertados, outros não.
– Nós ainda estávamos aprendendo onde ficava a porta do Palácio Piratini quando ele nos meteu uma faca na barriga. Foi um crítico implacável – queixa-se um integrante do governo Olívio, que pede para não ser identificado, ao mesmo tempo em que procura diferenciar esse momento específico do amplo perfil histórico de Krischke.
A tensão daquele momento é explicada por governistas da época com palavras como "vaidade" e, muito especialmente, com a suspeita de que Krischke esperaria ter mais protagonismo no momento em que seus companheiros chegavam ao poder. Ele ouve as críticas e as rejeita.
Em termos político-partidários, antigos amigos de Krischke contam que ele teve alguma participação no PSB. Mas rapidamente ressalvam: ele não se ambientou ao mundo dos partidos, por ser um homem que preza a independência.
Metaforicamente, as pessoas costumam dizer que os direitos humanos se tornaram um movimento que "só vai a enterro de bandido". O que Krischke acha disso?
– Essa é uma velha história. Foi industriada na ditadura. "Direitos humanos é amigo de bandidos", dizem. Isso é tão absurdo que não resiste a dois segundos e cinco neurônios. Porque denunciávamos as atrocidades da ditadura, inventaram esta história de que direitos humanos são coisa de bandidos.
E a pergunta a Jair é inevitável: qual o foco do movimento hoje?
– A igualdade, a ideia de que existe só uma raça: a raça humana.