Regina Paulina Barros Andreoli, 62 anos, passou por uma cirurgia para remover a catarata que prejudicava a visão do olho direito. Ao retirar o curativo, foi surpreendida ao não enxergar nada. A atendente de serviço social, no entanto, não foi a única. No mesmo 20 de maio de 2015, pelo menos outras 12 pessoas, entre as cerca de 60 que passaram pelo mesmo procedimento no Instituto de Oftalmologia de Encantado, no Vale do Taquari, perderam a visão de um dos olhos. O caso motivou uma investigação pelo Ministério Público, além de um inquérito policial em fase inicial.
– A ironia mais cruel é que venci dois cânceres e, quando entrei numa sala de cirurgia para resolver um problema quase banal, saí de lá sem (a visão) um órgão vital – compara Regina. – Vou até o fim para conseguir justiça.
Passados quase oito meses da cirurgia, a moradora de Estrela não tem perspectiva nenhuma de recuperar a visão do olho direito. Mesmo após três novos procedimentos cirúrgicos, a pálpebra continua caída, a íris, antes castanha, ficou de cor azul-acinzentada e a dor e o ressecamento a obrigam a pingar colírio constantemente.
Os sintomas, que pouco variam de um paciente para o outro, foram causados pela infecção da bactéria Pseudomonas aeruginosa. A informação foi fornecida pela clínica à Secretaria Estadual de Saúde (SES). Após inspeção, em dezembro, a Vigilância Sanitária concluiu que "houve falhas nos processos de trabalho e esterilização de materiais, havendo descumprimento da legislação sanitária" e interditou parcialmente a clínica. Com 100% dos atendimentos oferecidos via Sistema Único de Saúde (SUS), garantidos por um consórcio público de 37 municípios do Vale do Taquari, a clínica não pode realizar nenhuma cirurgia até março.
O responsável técnico pelo instituto e sócio-proprietário da empresa, Lair José Hüning, não foi localizado por ZH. Em contato com a clínica, a recepção informou que a posição oficial é de que ninguém vai se pronunciar. Já o consórcio diz que formou uma comissão para acompanhar o caso e tomar possíveis medidas. Em nota, ressaltou que a situação foi "pontual", pois ocorreu em apenas um dia e com parte dos pacientes atendidos.
Responsável pelo inquérito civil, aberto em outubro, a promotora Daniela Pires Schwab reuniu, após uma denúncia no MP de Lajeado, um total de 13 relatos de pessoas que perderam a visão em um dos olhos. Segundo informações do próprio instituto à Promotoria, 17 pessoas que fizeram cirurgia naquele mesmo dia teriam apresentado sequelas, mas nem todas teriam a mesma gravidade.
Candidata ao concurso Musa do Brasil morre durante procedimento estético
Processos por erro médico crescem 140% no STJ
– Pelo número de pessoas e pela consequência que tiveram, é um caso muito grave. Meu objetivo é buscar indenização para elas e buscar a regularidade para o centro voltar a funcionar – afirma Daniela, ressaltando a raridade de uma clínica oferecer serviço especializado de forma gratuita.
A promotora aguarda o relatório da Vigilância para dar seguimento ao inquérito. Ela adianta que uma das possibilidades é tentar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre lesionados e responsáveis pela clínica, que traria resultados mais imediatos do que um processo civil. Daniela não divulga o nome dos dois médicos que realizaram as cirurgias, justificando que a investigação ainda está em andamento.
No âmbito criminal, o delegado Silvio Huppes já deu início à investigação. No entanto, também depende de documentos a serem encaminhados pela 16ª Coordenadora Regional de Saúde, responsável pelos 37 municípios do Vale do Taquari, para dar seguimento ao inquérito.
"Minha esperança era de que poderia voltar a ver"
A aposentada Theolinda Maria Bonato, 81 anos, havia feito a remoção da catarata no olho esquerdo em março do ano passado no Instituto de Oftalmologia de Encantado. Dois meses depois, saiu do mesmo lugar sem enxergar com o olho direito. Viúva, ela mora sozinha em Taquari. Durante as duas semanas após a cirurgia, percorreu diariamente 180 quilômetros para ir e voltar da clínica – uma tentativa frustrada de curar a infecção e recuperar a visão.
– Esses dias fiquei gripada, e correu lágrima do meu olho. Minha esperança era de que poderia voltar a ver. Mas fui no doutor e ele disse que não, o olho está perdido – lamenta Theolinda, que colocou uma prótese no olho direito, corrigindo apenas esteticamente a sequela.
O presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul (Cremers), Rogério Aguiar, diz que a entidade abriu uma sindicância para apurar se houve erro médico após tomar conhecimento do surto de infecção no ano passado através da imprensa.
TJ confirma condenação de cirurgião plástico de Porto Alegre por erro médico
Leandro Boldrini é condenado por erro médico
Segundo a chefe da Divisão de Vigilância Sanitária estadual, Rosangela Sobieszczanski, os serviços de saúde são fiscalizados anualmente. Na última inspeção no Instituto de Oftalmologia de Encantado, a clínica estava dentro das normas. No entanto, avisados pelo MP, quando os fiscais foram ao local em dezembro, foram encontradas irregularidades. Entre elas, falhas no processo de esterilização, que podem ter provocado o surto de infecção.
– Verificamos que o tempo necessário para esterilizar o equipamento cirúrgico não condiz com o número de cirurgias feitas no mesmo dia. Não havia tempo hábil para realizar tantos procedimentos – esclarece Rosangela.
Outros erros graves, aponta ela, são que a clínica não tem os prontuários dos pacientes com o histórico do que foi feito, algo que é determinado em lei, e também não comunicou a Secretaria da Saúde sobre a infecção, o que também é obrigatório. A Vigilância comunicou os erros à clínica e exigiu mudanças. Somente mediante cumprimento o centro cirúrgico poderá ser aberto. As penalidades serão determinadas ao final da investigação do órgão.
Que bactéria é essa
– A Pseudomonas aeruginosa é uma bactéria que tem como ambiente de origem o solo, mas, como é resistente, é capaz de sobreviver em outros ambientes e é considerada comum em hospitais.
– É oportunista, ou seja, raramente causa doenças em um sistema imunológico saudável. Ela explora fraquezas do organismo e pode causar infecção em diversas partes do corpo humano, como os olhos.
– Possui resistência a um grande número de antibióticos e antissépticos, o que a torna uma das causas de infecções em serviços de saúde e também dificulta o tratamento.
– Pode colonizar em equipamentos médicos não esterilizados adequadamente, por isso a importância do cumprimento da legislação sanitária.
– No ano passado, o Estado registrou 324 infecções por Pseudomonas aeruginosa, correspondendo a 5,6% do total de notificações realizadas por 41 serviços de saúde.
Fonte: Marilia Maria Santos Severo, infectologista ligada à Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre (FFFCMPA), e Secretaria da Saúde
A clínica
– Reinaugurado em setembro de 2014, o Instituto de Oftalmologia de Encantado é uma clínica especializada que atende pacientes de 37 municípios da região do Vale do Taquari.
– O serviço e a contratação da equipe médica são de responsabilidade da empresa Instituto de Oftalmologia Faxinal, contratada por licitação pelo Consórcio Intermunicipal de Saúde do Vale do Rio Taquari (Consisa-VRT) para atuar em Encantado.
– O consórcio reúne recursos das prefeituras, do Estado e da União e garante que 100% dos pacientes sejam atendidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
– A clínica é credenciada para atender, por mês, 1,3 mil consultas, 3,9 mil diagnósticos e exames e 212 cirurgias.