O difícil recomeço de quem teve a vida soterrada em Mariana
Cão espera pelo dono em telhado de casa destruída
A aposentada Conceição Luz, 63 anos, ergue o fardo com seis garrafas de água mineral acima da cabeça e sussurra, olhando para o céu:
- Obrigada, meu Senhor. Obrigada.
Vítima de diabetes e de pressão alta, a moradora de Governador Valadares (MG) havia esperado cerca de uma hora em uma fila de quase meio quilômetro, sob sol inclemente, a fim de levar água para casa. Mesmo que a prefeitura tenha anunciado a volta do abastecimento, interrompido 10 dias antes devido à poluição do Rio Doce por lama, filas de milhares de pessoas em busca de garrafas distribuídas gratuitamente seguem se formando todos os dias.
Em Minas, população faz velório a céu aberto para o Rio Doce
O que se sabe sobre o desastre ambiental que encheu de lama o Rio Doce
Um dos principais efeitos do desastre ambiental ocorrido em Mariana (MG) no dia 5 de novembro foi deixar com sede cidades inteiras banhadas pelo Rio Doce. Além de Valadares, com 263 mil habitantes, municípios como Baixo Guandu e Colatina, no Espírito Santo, tiveram de interromper o fornecimento pela presença excessiva do lodo despejado pela barragem do Fundão.
Em Valadares, onde a onda mais espessa da lama já passou, a captação no rio foi retomada. Mesmo assim, Conceição e milhares de outros moradores mantêm uma corrida diária em busca de água mineral.
- O que está saindo da torneira não dá para consumir, não. É um cloro só. Não tomo nem banho com ela - conta a idosa.
Outros moradores reclamam do tom alaranjado do líquido, do cheiro que ele exala, ou simplesmente temem que parte dos rejeitos da mineradora Samarco escorra pelas torneiras de suas casas. Desconfiados, servem-se da rede geral apenas para tarefas como lavar roupa. Por isso, em pouco mais de uma hora de distribuição de água mineral, na quinta-feira, cerca de 2 mil pessoas haviam retirado senhas em uma fila a perder de vista no bairro Altinópolis.
Em toda a cidade, havia cinco pontos de distribuição de garrafas. Na fila formada em Altinópolis, que aumentava de tamanho à medida que a informação sobre o ponto de entrega se espalhava pela região, havia idosos, crianças, mães com bebês no colo. Dois homens entregavam as senhas para a população sedenta.
Para driblar os problemas provocados pela lama, moradores como a vendedora Poliana da Silva, 29 anos, economizam e reciclam água como podem.
- Tomo banho e escovo os dentes com balde. Depois, uso a água suja para despejar no vaso sanitário - conta Poliana.
Outras pessoas decidiram simplesmente abandonar a cidade até a situação se normalizar.
- Minha filha e meu neto viajaram para Teófilo Otoni (MG) há uma semana. Muita gente saiu daqui - conta o operador de caldeira José Correia, 55 anos, carregando as suas seis garrafas de água mineral.
A assessoria de imprensa da prefeitura de Valadares informa que são feitos testes diários para garantir a potabilidade da água, e o nível de cloro foi elevado, ainda dentro dos padrões estabelecidos pelo Ministério da Saúde, para garantir a qualidade do líquido. Os informes oficiais, porém, ainda não foram suficientes para aplacar a corrida diária da população em busca de água limpa desde que a lama manchou o Rio Doce.
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Rota da Lama
Zero Hora percorre o rastro de devastação provocado pelo rompimento das barragens ao longo do curso do Rio Doce. A primeira parada foi na localidade de Bento Rodrigues, no município de Mariana, que registrou mortes, desaparecimentos e foi praticamente extinta. A segunda parada foi em Paracatu de Baixo, também em Mariana (MG), onde a lama destruiu as casas e se acumula em blocos de um a dois metros de altura. Veja abaixo todas as matérias que já foram publicadas: